San Tiago Dantas

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01/08/1931

PANORAMA II

Em nossa nota de ontem, apreciamos os grandes lineamentos da mentalidade e da consciência política da Amazônia, do Nordeste, da Bahia e de Minas Gerais. Vimos as diferenciações profundas dessas regiões distintas.

Temos agora, diante de nós, a Capital Federal, com suas características próprias, decorrentes de sua forte brasilidade, de sua condição de cidade governamental e dos imperativos a que não se podem furtar as grandes metrópoles.

Como índice de nacionalidade, não erraremos muito se afirmarmos que a alma popular do Rio de Janeiro é quase a mesma da Bahia, de São Salvador com a forte influência africana e indígena, produzindo o tipo de uma população sentimental, que desdenha dos problemas graves e procura em tudo pretexto para suas expansões de rua, como para o largo extravasamento de seu espírito irreverente e satírico. Cidade dos capoeiras e dos mulatos, das macumbas, da malandragem e do carnaval, dos sambas e do maxixe, é também o centro onde se cristalizou a cultura do país e os hábitos de sociedade. É, ao mesmo tempo, a cidade do rabo de arraia, do cabo eleitoral da Saúde, e dos ademanes protocolares, dos discursos acadêmicos e das recepções elegantes. Centro da burocracia, onde funciona o governo, desde a Colônia, a sua pequena burguesia é constituída por em exército de funcionários públicos dos ministérios com suas inúmeras repartições e seus complexos departamentos, oficiais do Exército e da Marinha, o professorado de suas escolas superiores, a onda de literatos e jornalistas dos seus numerosíssimos jornais, o pessoal das legações, dos consulados e das embaixadas, o comércio médio de uma infinidade de varejistas, e a avalanche de políticos de todos os Estados, que ali gravitam em torno do Poder Federal.

Elementos eminentemente dissociativos da opinião, agem politicamente num sentido de permanente negativismo, não sendo possível ali, de maneira nenhuma, a formação de uma corrente preponderante, justamente pela multiplicidade de correntes em atritos mal disfarçados pela displicência irônica dos meios sociais, das chalaças da rua. Daí a indiferença da população média pelos problemas nacionais, agravada pela aguda inteligência do carioca, que percebe nos figurões que dirigem os negócios públicos os calcanhares de Aquiles, os pés de barro … Todos os entusiasmos no Rio de Janeiro são efêmeros. Num mesmo dia podem-se organizar grandiosas manifestações de apreço a dois adversários. Os clichês que ficaram nos arquivos dos jornais durante a campanha eleitoral mais recente revelam a possibilidade de se empreitarem no Rio quantas manifestações de apreço ou de desagravo se queiram, visando este ou aquele herói. Ali foi vaiado e ovacionado Arthur Bernardes. Ali os ídolos duram muito pouco.

Teria exercido uma forte influência sobre o Rio de Janeiro a Revolução de Outubro? Tudo parece indicar que a grande Metrópole continua a mesma, no que ela apresenta de burguês, comércio, funcionalismo, intelectualidade e política. Mas um fenômeno novo parece também estar solapando essa grande fachada da civilização brasileira. É que a questão social ali se agrava com a crise que atravessamos. A sua solução dependerá das camadas inferiores da sociedade, pois não encontrará nenhuma resistência.

Já o Rio Grande do Sul apresenta um aspecto inteiramente diferente. É a única região brasileira onde o idealismo político, no que tem de mais romântico e sentimental, pode dar um sentido extrassocial à vida dos partidos. Do ponto de vista político, é o Rio Grande profundamente diferente do resto do país. Numa época do mais agudo realismo, o Rio Grande ainda é lírico. A civilização moderna destruiu os heróis; e ali tudo se fundamenta no culto dos heróis. Os homens conquistam a opinião pública pelos seus gestos de bravura. A guerra é uma religião, o guerreiro o índice das virtudes sociais. A Revolução de Outubro foi a grande afirmação do Rio Grande; na capacidade do sacrifício, no sentido de glória, na atitude desassombrada. As suas populações correram pressurosas para alcançar os comboios que deveriam conduzir ao Centro as tropas magníficas no seu amor à Pátria Gaúcha. Era a conquista que o Rio Grande ia fazer, pela sua coragem e pela sua capacidade belicosa, da hegemonia nacional. Hegemonia para quê? Para oprimir os outros Estados? Não. O Rio Grande queria fazer a felicidade do Brasil. Bastava-lhe essa glória. E era tudo. Como se vê, um ideal puramente poético. Que revela um povo essencialmente místico; o misticismo de Joana D’arc: salvar a França. O Rio Grande queria salvar o Brasil. E de que modo? Impondo ao resto do país a consciência cívica do gaúcho. Reerguendo o civismo brasileiro. Tornando as outras populações nacionais capazes de um heroísmo de finalidade puramente transcendental: a regeneração dos costumes, a integralização da nacionalidade na democracia. Até então, o Rio Grande, que era a única unidade da Federação que mantinha através de longos decênios, dois partidos em luta, sentia-se como que segregado pelo país, diante do opressivo utilitarismo que dominava as outras circunscrições da República. Pensara até em separar-se. Esse movimento de separatismo se explicava: o Rio Grande se sentia incompreendido. Em 1930, resolveu fazer-se compreender. E marchou contra o Rio para amarrar seus fogosos ginetes no obelisco da Avenida.

Os que presenciavam a entrada desses guerreiros em São Paulo, irritavam-se, a princípio, depois se comoviam. Bastava conversar como esses bravos de lenço vermelho no pescoço, bombachas e esporas retinindo. Em tudo o amor fraterno pelo Brasil. Mas uma incompreensão absoluta do nosso espírito, da fisionomia do nosso civismo, das nossas realidades sociais e econômicas. Numa época em que estamos a lutar nos guichês dos bancos, com algarismos e equações econômicas, numa época em que os problemas não são mais de ordem cívica, mas de ordem social, eles nos acenavam, candidamente, com seu remédio: o ardor místico das batalhas, o culto religioso das instituições republicanas.

Era a alma nobre e cavalheiresca dos Pampas, estendendo a mão generosa aos vencidos, sem perceber que, naquele mesmo instante iniciava-se, com a reconstrução nacional, uma modalidade diferente de luta, na qual já nada vale a espada que reluz, mas o lápis que calcula; nem a estratégia das batalhas, e sim o plano social capaz de condicionar todo o complexo, tremendo problema de uma Nacionalidade aniquilada pela mais aguda das suas crises orgânicas.

É o Rio Grande no Brasil a única Nação politicamente organizada, justamente porque a sua organização se firma numa base ideológica que, encontrando no idealismo místico de suas populações um seguro ponto de apoio, dificilmente se alicerçaria no terreno movediço das populações materialistas do Centro e do Norte. Por isso mesmo, é o Rio Grande agora, depois da Revolução, o único Estado com uma frente única fortemente estruturada, como acontece com todas as nações em face das assoberbantes crises externas. É que o Rio Grande está compreendendo o perigo que representam as forças desencadeadas pelo seu grande idealismo político, se elas tomarem a direção que decorre geralmente dos movimentos revolucionários, neste período atual da vida da humanidade. Essa necessidade de reposição imediata do país nas bases da democracia pura, sob a égide da hegemonia idealista e generosa dos Pampas é que está exercendo uma pressão decisiva nos partidos sulinos, que tratam de se fundir com um só objetivo.

Não é o caso de se perguntar qual a influência exercida pela Revolução de Outubro no Rio Grande, pois o movimento partiu dali. Mas não é de todo descabido indagar-se se o Brasil e o Rio Grande se compreenderam finalmente.

E, para se ter uma ideia exata dessa situação psicológica da Nacionalidade, ultimemos o esboço deste “panorama”, com o levantamento da cartografia social e política de São Paulo, que faremos em nossa nota de amanhã.

Estudemos o caso paulista, que é o mais próximo, o mais grave, o mais complexo. Que se relaciona mais diretamente com o plano intelectual e o plano econômico da Nação. E que significa tudo, pois é a expressão de maior força. Dessa força que se retraiu e emudeceu diante da possível batalha de ltararé. E que nem por isso deixará de pesar fortemente nos destinos nacionais.

A Razão, 01.08.1931.