San Tiago Dantas

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04/08/1931

CONTRAORDEM

É inegável para quem observa a Revolução brasileira no seu aspecto político, que houve uma profunda mudança de objetivos e de princípios, da fase preparatória, anterior ao movimento armado, para essa primeira fase posterior à vitória: o pensamento da Revolução mudou. Excedeu tanto os manifestos da Aliança,1 tomou rumos tão diversos daqueles que abrira diante dos partidários do Sr. Washington Luís, que se perdeu entre as duas fases toda a continuidade, e só historicamente é que se pode considerar a Aliança Liberal como precursora da Revolução. Politicamente são dois movimentos, um lançado nas Câmaras pelo restabelecimento integral e imediato das verdades do regime democrático, o outro lançado sobre a vitória das armas, para instauração de um governo discricionário transitório, com a função de resolver problemas prementes da vida da própria nacionalidade. O primeiro movimento tem os seus homens e os seus partidos, e o segundo tem os seus. Aliancistas são o Sr. Antônio Carlos, o Sr. João Neves, o Sr. Bernardes. Revolucionários são os Sr. Oswaldo Aranha, o Sr. Francisco Campos, o Sr. João Alberto.

Aqueles que tiveram seu instante máximo antes de outubro, declinarão depois. Estes, que já ficaram na segunda plana, aqui vieram a ser as figuras principais. O Sr. Getúlio Vargas da Aliança e da plataforma liberal não é mesmo o chefe do Governo Provisório, do discurso às Comissões Legislativas. Houve uma mudança, a criação de um novo ambiente pelo predomínio de forças que estavam contidas nas horas da agitação parlamentar e da conspiração, e que trouxeram um novo sentido à transformação política que a Aliança iniciara.

Acontece porém que a Revolução fora feita com o concurso da opinião popular, não sob a pressão desse espírito que formaria o ambiente de hoje, mas pela adesão a programas definidos, que eram os da Aliança, e que prometiam simplesmente retirar um déspota do poder, e restaurar logo em seguida o império da vontade nacional, dentro da letra da lei. A seguir esses programas, o Sr. Getúlio Vargas teria no dia seguinte ao da Revolução convocado eleições, e, dada posse ao presidente eleito, teria cancelado o seu mandato transitório, fazendo cessar incontinente, a ordem revolucionária.

Não foi porém isso que se deu, e mais do que a vontade dos chefes, influiu para o novo rumo do governo, a própria carga de fatos que pesou nos destinos da Revolução. O Brasil estava, como ainda está, num desses instantes em que os povos têm a vocação de ditadura. Problemas assoberbantes que exigiam recursos extremos, responsabilidades indeclináveis para quem tomasse a si uma parcela do poder, e por cima, a instabilidade da nova situação apoiada nas armas, puseram os homens do governo revolucionário na obrigação de trair os manifestos e pisar nas plataformas, em que pesasse o Sr. Maurício de Lacerda e outros românticos da Revolução. Além de que a nova mentalidade fazia subir o seu clamor, das vanguardas. E a Revolução caminharia socialmente, ainda que sem continuidade e sem segurança.

Foi isso que se viu até hoje, apesar das marchas e contramarchas do legionarismo mineiro e do partido militar. Todo mundo sentiu que o Estado avançava num novo sentido, mas ninguém percebeu logo qual era, nem por que processos se operava a marcha. A Revolução brasileira entrou para a categoria das “revoluções sem programa” ou simples “revoluções morais’: que se diferenciam profundamente das “revoluções doutrinárias”, “com programa”, porque nelas o espírito revolucionário é apenas um sentimento indeterminado, impreciso, mas que atuará sobre os fatos de uma maneira uniforme, e em pouco formará a sua superestrutura de doutrina. Pensou-se mesmo em aproximar a Revolução brasileira da Revolução Fascista de 1922,2 que também fora “revolução sem programa”, também se concretizara mais em nomes que em ideias, e só depois fora criando o sistema administrativo e a técnica política, de que saiu uma das Teorias de Estado contemporâneas.

Desse “espírito de reforma” a objetivar tiraria a ordem política nascida do movimento de outubro, o seu direito à autodefesa e à imposição da autoridade. Sem tal espírito, nem esse direito nem essa imposição estariam legitimadas, e à ordem revolucionaria faltaria um fundamento natural, só cabendo aos bons governantes convocar a Constituinte e proceder às eleições.

Não creio que alguém tenha compreendido isso melhor do que o Sr. Oswaldo Aranha. S. Exa. acaba de reconhecer, numa pequena entrevista feita no seu regresso do Sul, a necessidade de apressar a constitucionalização do país, quando todos só a esperavam daqui a mais de ano, e acaba de deixar falando no deserto os que, como eu, vinham pregando contra ela. Mas o fez diante de um fato cuja verdadeira significação todo mundo compreendeu, e que realmente tirou à ordem revolucionaria o seu fundamento essencial.

Esse fato foi a definição de pensamento dos líderes políticos rio-grandenses, e a adesão generalizada e tácita a esse pensamento em todos os Estados. A Revolução foi por eles reconduzida às próprias fontes da Aliança, e a marcha aparente destes meses cessou, indo restabelecer-se dentro de pouco a unidade perdida, enquanto no cenário da imprensa e da política vão falar os Srs. Borges de Medeiros, Antônio Carlos, João Neves e Raul Pilla.

A ordem discricionária que fora um corolário daquele superamento do aliancismo terminará com a desaparição do superamento. A nossa “revolução sem programa”, privada do seu “espírito de reforma”, já não terá senão de passar para que o país retome o ritmo da sua vida constitucional e apelem às urnas os cidadãos.

Dizendo que “hoje se pensa na constitucionalização do Brasil”, o primeiro-ministro exprime a contraordem que o governo provisório dirige aos homens da Revolução. “Já que a mentalidade dos nossos políticos ficou onde estava, já não há mais meios para podermos reformar”. E, de fato, a Revolução, diante da Assembleia Constituinte, vai abrir mão dos seus decepcionados desejos de reformar o país.

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1 Aliança Liberal, criada em 1929, unia diferentes forças políticas de oposição à candidatura à presidência da República do paulista Júlio Prestes nas eleições do ano seguinte.

2 San Tiago refere-se à ascensão ao poder por Benito Mussolini, chefe do Partido Fascista italiano, em 1922 e seu governo (1922-1943).

A Razão, 04.08.1931.