San Tiago Dantas

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10-07-1931

O VATICANO E A ITÁLIA

Só agora, depois da publicação da Encíclica 1 em que a Santa Sé define os pontos de doutrina controvertidos no seu conflito com a Itália, pode-se enfim falar desse tormentoso caso, que pôs em tão grande perigo a obra de reconstrução da política moral da península.

Vê-se agora que o conflito teve uma marcha evolutiva, sem o estudo da qual não será possível julgá-lo. Pois as reações turbulentas dos “fascistas” contra os elementos que na Ação Católica atacavam o regime veio acabar na mais profunda querela, que ficou suspensa sobre as relações da Igreja e do Estado: a questão da supremacia de um ou de outro, na orientação e na organização do ensino.

É o que nós hoje estamos vendo, quando já nos sentimos sobre a clara nudez do problema, e consideramos o pequeno relevo que tem à distância as disputas e brigas dos moços da Ação Católica ou dos “Fascios”. Já não interessa saber, salvo para uma apuração de responsabilidade, se os velhos partidários de dom Sturzo 2 estavam ou não fazendo o antifascismo das fileiras da Ação Católica. Por mim penso que estavam. Os remanescentes do Partido Popular não calaram nunca o seu descontentamento e dentro de uma instituição cercada de excepcionais garantias pelo direito concordatário, 3 levaram ativamente, como podiam, à pratica os seus princípios de tenaz oposição. Mas já vêm culpas ao governo do Sr Mussolini, de não ter mantido a ordem publica à altura das declarações que os fascistas sobre isso sempre fizeram, permitindo a desordem e as arruaças, e mais deixando que a própria Polícia muitas vezes nela se arrastasse.

Tudo isso porem é a pré-história do grande conflito de hoje, vinculado para o historiador ao estabelecimento dos pactos de Latrão, cujo espírito social nunca estará explicado se não se atender a esta sua grande revisão.

Porque de fato uma grande “revisão” se está processando do espírito de Latrão. Está-se sentindo que a união harmoniosa do poder espiritual e do poder temporal, que a Concordata continha numa insuperável perfeição, era mais uma união autorizada pela “doutrina fascista” e pela “doutrina cristã”, do que pela posição histórica em que hoje se encontram a Igreja Católica e a Itália fascista. Pois é o que todos nós estamos vendo. A história corrigindo os avanços da doutrina, e mostrando que não se une pelo direito o que não está realmente ligado, mesmo quando dois regimes caminham, através da lenta transformação de um deles, para a harmonia e a interpretação absoluta.

A Igreja e o Estado haviam delimitado o campo das suas atividades. A Ação Católica agiria dentro de um setor determinado: o de difusão e atuação dos princípios católicos.

A doutrina cristã era reconhecida pela Itália como o coroamento da instrução pública e seria ministrada nas classes superiores como nas elementares, “segundo programa a estabelecer-se de acordo entre a Santa Sé e o Estado”.

Firmara-se assim, em princípio, a regra de limitação da atividade de cada poder e dos órgãos que dele emanavam.

A quem porém de declarar a lei aplicável ao caso concreto? A quem ficaria reservada jurisdição para os conflitos do direito concordatário?

A posição equidistante das partes pactuantes não evitaria os conflitos como aquele de que partiu o incidente atual.

De passo em passo, entretanto, trocando notas e visitas diplomáticas, os governos da Itália e da Santa Sé chegaram ao ponto crítico da controvérsia. É o problema da educação, da educação pela Igreja ou pelo Estado, que põe um imperativo da doutrina cristã em oposição formal a um princípio do regime.

E entre o finalismo nacional da educação fascista e o finalismo sobrenatural da educação cristã, fica suspensa uma questão irredutível, que pode trazer um choque fatal ao Fascismo e danoso à Igreja, tanto mais que abrirá à invasão comunista, o único grande dique que o mundo moderno tinha para lhe opor.

Não penso, porém, que haja nessa controvérsia o espírito “estatólatra” da doutrina fascista, mas talvez apenas a hipertrofia do poder e do finalismo de Estado, no regime de fascismo nacionalista que vigora na Itália.

O fascismo nada contém em si, como doutrina, que o obrigue a reivindicar a tutela e a orientação da educação. O nacionalismo político em que se objetivou o fascismo italiano, esse tem nessa reivindicação um corolário do seu processo histórico, da sua reação inevitável contra um meio desnacionalizado, desapegado da sua tradição, e que só em nome dessa tradição nacional ainda renascente, reagiu contra as forças que desagregavam o país.

É preciso, pois, que o mundo, que está julgando o grande e desolador conflito de Roma, esteja preliminarmente certo que é a uma luta de poderes, não a uma luta de doutrinas, que está neste instante assistindo.

Ainda resta porém ver as consequências que a má negociação dessa disputa pode acarretar. Sobretudo depois que uma circular do Partido Fascista criou a incompatibilidade entre a matrícula nas associações que emanam do Partido e nas que dependem da Ação Católica.

Passo grave, tão grave como certos termos da Encíclica, e que devem estar provocando alegria de uma margem e de outra do Volga. 4

A Razão, 10.07.1931.

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1 Encíclica Papal “Non Abbiamo Bisogno” (Não temos necessidade). Editada em 29 de junho de 1931 pelo papa Pio XI.

2 Dom Luigi Sturzo (1871-1959), sacerdote católico e político italiano. Fundou o Partido Popular Italiano.

3 Relativo à concordata entre o Vaticano e o governo fascista, formalizada no Pacto de Latrão, firmado em fevereiro de 1929.

4 Rio que banha Moscou, capital da Rússia comunista.