O DESTINO DA CONSTITUINTE I
Depois das declarações peremptórias do Governo sobre o prolongamento do período constitucional, o interesse público pelo palpitante assunto – a Constituinte – arrefeceu enormemente. O ambiente político entrou numa fase de notável sossego, interventorias e revoltas serenaram, e a atenção se absorveu toda na reação econômica cujos primeiros sintomas se notavam, e que se esperava que debelasse a crise. Os sintomas eram porém pequenos, e de repente – como alguém que examina absortamente um doente para lhe sentir as pequenas melhoras, e de súbito cai em si, assustado com a própria imobilidade – de repente o público sentiu o silêncio atento que se fizera, e caiu em sobressalto.
Suspeitou-se de revoluções em toda parte, imaginou-se que naquele silêncio conspirava todo mundo, e o vento dos boatos recomeçou, mais intenso e incerto do que nunca. Os problemas políticos voltaram à cena, e a Constituinte entrou de novo na ordem do dia.
É isso que mostra a “enquete” que o Estado do Rio Grande 1 começou, e a que já atendeu numa grande entrevista concedida ao Sr. Mem de Sá, 2 o patriarca da política rio-grandense, o Sr. Borges de Medeiros. 3 E tendo o seu pensamento a influência que se sabe no espírito dos homens públicos do Rio Grande, é possível tomar a sua palavra quase como uma profecia do destino da Constituinte.
Eu sempre tivera do Sr. Borges de Medeiros a noção do patriarca. Seu espírito me parecia a cristalização de todo um processo de formação mental por que passaram os homens brasileiros das vésperas da República. No seu positivismo convicto, no seu apego ao republicanismo clássico de Bryce, 4 no seu espírito de liberal ortodoxo que fazia publicar os projetos de lei para receber a colaboração popular, estava precisamente a mentalidade de um “puro” saído das oficinas do espírito democrático, fiel infinitamente a esse espírito, incapaz de fazer dele um rótulo ou uma arma. Na sua probidade tradicional, naquela sua austeridade inatacável, que se integrou como um louro ao patrimônio moral e cívico do Rio Grande, estava a honra do patriarca moral, do homem formado na aspereza rígida das famílias das estâncias.
Eu tinha assim o Sr. Borges de Medeiros como uma grande figura simbólica do passado. Sempre o tive como um democrático de ideias, na acepção mais clássica do termo. Foi o Sr. Oswaldo Aranha 5 quem primeiro me abalou essa ideia, quando me disse, em conversa, que o pensamento do chefe gaúcho estava hoje em dia moldado numa eterna mocidade ao que de mais adiantado tem a cultura política moderna. Confesso que nunca me representei bem o Sr. Borges de Medeiros corporativista ou trabalhista. Guardei sempre a imagem primitiva, corrigindo-a apenas, cada vez que me vinha, com esses dados extraordinários.
Temos agora sob os olhos a entrevista do chefe rio-grandense. Leio-a e releio-a. E confesso que encontro muito mais o “meu” retrato que aquele que retoquei com as informações do Sr. Oswaldo Aranha.
Aqui está de fato o velho liberal, que ainda crê na necessidade e na eficiência dos partidos. Que ainda se mantém partidário da ideia de conservar o estado como um simples instrumento jurídico do governo, alheio ou pelo menos diferenciado da vida econômica e social da Nação, entregue a grupos partidários que nela efemeramente se constituem, e que passam periodicamente pelo poder. Aqui está o presidencialista, lido em Bryce, que ainda vê, aceita e prega a ideia de que há poderes “harmônicos e independentes entre si”, como queria Montesquieu. 6 Aqui está o homem que conserva todo um conceito abstrato de representação, que quer que se obtenha “a representação natural da grande massa de analfabetos, até aqui excluídos da intervenção na vida pública (sic)”. O mesmo homem que nega legitimidade à ditadura, que quer para já a Constituição, que deseja uma Constituinte como a de 91,7 e que acredita na função criada pelo órgão, como deixa entender ao falar sobre a “representação de classes’: que aliás está em desacordo, a meu ver, com o que existe de moderno e técnico sobre tal assunto.
Volto ao meu antigo retrato do Sr. Borges. Nele vejo a expressão mais alta da mentalidade pré-republicana. Por ser de quem é antes de tudo. E depois por encarnar com um equilíbrio admirável o que vêm dizendo todos os homens ouvidos sobre Constituição.
Por isso, sinto nesta entrevista o valor de um documento que precede o significado ideológico da nossa terceira Constituição se o governo do Sr. Getúlio Vargas 8 não puder conter a onda constitucionalista que se encapela contra a irredutibilidade de suas afirmações. Repetiremos o caminho por onde nos temos perdido na nossa marcha política. É preciso evitar o caminho. E para isso estudar ponto por ponto, o que disse o Sr. Borges de Medeiros na sua notável entrevista de ontem. Tratarei amanhã desse velho preconceito, de que o Sr. Borges faz a ideia central da reorganização política do país, que é a crença na necessidade, ou mesmo na utilidade, dos partidos.
Veremos que o no Estado, fora e acima dos partidos, que se encontra o verdadeiro princípio que deve presidir àquela reorganização.
A Razão, 11.07.1931.
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1 Jornal editado em Porto Alegre. Órgão do Partido Libertador.
2 Mem de Sá (1905-1989), político gaúcho. A partir de 1929, secretário geral do jornal O Estado do Rio Grande.
3 Borges de Medeiros (1863-1961), político gaúcho. Presidente [governador] do Rio Grande do Sul de 1898 a 1908, de 1913 a 1926.
4 James Bryce (1838-1922), jurista britânico.
5 Oswaldo Aranha (1894-1960), político gaúcho. Ministro da justiça de 1930 a 1931; ministro da fazenda de 1931 a 1934.
6 Charles Louis de Secondat, barão de Montesquieu (1689-1755), pensador político francês.
7 Primeira Constituição brasileira republicana, editada em 25.02.1891.
8 Getúlio Vargas (1882-1954), político gaúcho. Presidente da República de 1930 a 1945 e entre 1951 e 1954.