AINDA O ENSINO RELIGIOSO
Com a regulamentação do ensino religioso nas escolas de São Paulo, voltou à baila nos jornais o grande assunto. Não surgiram certamente argumentos novos, nem o tema variou de posição. Mas tornou-se oportuno olhar em conjunto o debate encerrado, sobretudo para uma análise dos motivos doutrinários por que uns o atacaram e outros o defenderam.
O decreto com que o Governo Provisório estabeleceu o ensino religioso facultativo nas escolas* foi a primeira lei que levantou entre nós um debate doutrinário, e que teve o mérito de vir sacudir o pó que autenticava certos erros incorporados à série dos nossos postulados definitivos. Vieram à luz incoerências profundas que existiam na nossa mentalidade. E deixou-se aberta uma brecha para a política doutrinária fazer entrar os seus pareceres, dividindo em campos ideológicos adversários os que constroem e os que criticam a nossa vida pública.
Nunca porém se sentiu tão fortemente, como diante desse decreto, a ausência de correntes políticas organizando e dividindo a opinião. Pois o alarido que se formou em torno dele foi mais uma confusão de vozes individuais e de grupos religiosos do que o coro dos partidos, cada um deles firmado em uma posição.
E nenhuma questão deveria interessar tanto os partidos, nenhuma exigia tanto deles num pronunciamento em harmonia com os seus princípios norteadores. A falta desse pronunciamento, o silêncio indiferente de que cercaram a lei, foi uma prova a mais para a estafada conclusão de que os nossos pobres partidos não têm opinião nem doutrina.
Foram antes as correntes religiosas que agiram como forças conjuntas no “alarido”. Os católicos tomaram a si a defesa do decreto do Sr. Francisco Campos, e os positivistas se incumbiram do ataque. Ao lado dos últimos atuou o exercício de opinião disperso e secreto da livre maçonaria e, pode-se sem receio dizer, os expoentes médios daquilo que estatisticamente se chamará – a mentalidade nacional. Muito se discutiu e se clamou, mas olhando agora de longe o debate, podemos reduzi-lo a duplo aspecto interessantíssimo, que envolve até mesmo a argumentação dos católicos, os quais excetuando duas altíssimas figuras que nele intervieram, tiveram de abandonar os seus argumentos favoráveis, para concentrar toda a sua atividade na destruição dos argumentos contrários com que era detratada a lei.
Esse duplo aspecto veio pôr em foco, mais uma vez, a profundeza da nossa fibra liberal, e evidenciar um grande erro que o laicismo político nela há século enxertara. É que defensores e atacantes da lei, tomaram as suas posições em nome da liberdade de consciência, e apenas divergiam em que uns consideravam o decreto Campos remissivo e outros atentatório dessa liberdade. Esforçavam-se uns por demonstrar essa coisa incompreensível – que o Estado, por permitir o ensino de qualquer religião nas suas escolas, tomava partido a favor de uma delas contra as demais. Declaravam os outros, com razão de sobra, que só assim é que o Estado respeitava realmente a liberdade de consciência, enquanto que na sua atitude anterior a estivera claramente violando. Mas, como se vê, o que ambos defendiam era a liberdade de consciência, de modo que estavam unidos na teoria, e apenas divididos na prática.
Não é porém só perante a liberdade de consciência que a lei revolucionária do Sr. Campos pode ser apreciada. Mesmo para os que como nós não aceitam a liberdade de consciência posta acima de qualquer ordem externa, pois veem nisso um simples postulado do racionalismo filosófico do século XVIII, superado por todo o movimento de ideais de que surgirá uma ordem nova tanto social como jurídica, mesmo para esses, a lei que introduz o ensino religioso nas escolas encontra ampla defesa, capaz de levar a consequências ainda mais afastadas e radicais.
Nós não admitimos que o Estado se desinteresse da vida moral e religiosa da nacionalidade. No Estado liberal isso era possível, pois o Estado figurava como um simples instrumento jurídico, desinteressado dos aspectos múltiplos da vida social da Nação. Mas no Estado integral que desejamos, aberto a todas as atividades populares, o ensino deve participar da religião nacional. Deve ter caráter facultativo naturalmente, mas não com a base negativa que o decreto de maio lhe deu. Isto é, deve estabelecer a escusa facultativa, constituindo nas nossas escolas a cátedra católica, que corresponde aos imperativos da religião brasileira, da religião que formou os fundamentos da cultura da raça.
Todos que querem ver o Estado evoluindo da sua passada forma liberal e leiga, e assimilando, ainda que sem plano certo as atividades nacionais – atividades do espírito e atividades econômicas -, estarão ao lado do decreto do Sr. Francisco Campos. Pois, se essa lei não é um ponto de chegada, é seguramente um ponto de partida para a grande obra de revitalização do Estado que desejam todos aqueles que o não querem ver reduzido a um simples aparelho jurídico e eleitoral.
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* Decreto 19.941, de 30 de abril de 1931. Dispôs sobre a instrução religiosa nos cursos primário, secundário e normal.
A Razão, 11.08.1931.