O OTIMISMO DE FORD E O BRASIL
O Sr. Austregésilo de Athayde 1 acaba de obter de Detroit uma entrevista de Ford 2 para os Diários Associados. O rei da indústria norte-americana forneceu ao jornalista os seus conceitos na ordem mais geral das ideias, desde as que concernem as leis de evolução dos povos, até a sobrevivência e transmigração da alma. Revelou na sua inteireza todo o pensamento filosófico que inspira o fatalismo otimista dos americanos de hoje. Fez bons prognósticos sobre os seus interesses na Amazônia, mostrou ao público mais uma vez aquela sua operosidade alegre e sadia, que torna o seu triunfo econômico mais uma vitória do trabalho que do capital, e deixou aberto por um momento aos nossos olhos o quadro dos alicerces espirituais em que as civilizações industrialistas se baseiam, e que é aquele que a maioria dos brasileiros hoje legitima e deseja para o seu país.
De fato o mimetismo brasileiro hoje se volta mais do que nunca para a civilização yankee, com a qual a nossa tem as mais pronunciadas afinidades exteriores. No caminho do industrialismo crescente, do urbanismo mais decisivo, da aplicação do populacionismo, e na tendência a uma política imigratória franca, que nos trará camadas de populações novas que acentuarão o nosso cosmopolitismo, nesse caminho, abrem-se os rumos mais claros que tem o Brasil diante de si.
Vivemos hoje em dia magnetizados pela civilização americana, a cuja feição política desde 1891 nos apegamos, que tem tido entre nós os seus grandes defensores, quer no terreno dos estudos sociais, quer mesmo no terreno das grandes realizações práticas. Guardamos porém dessa civilização a ideia de que é uma construção do puro espírito pragmatista a que as doutrinas materialistas levaram o mundo contemporâneo. O pensamento da sociedade brasileiro começou a considerar o povo americano como um povo realista dominado pelo alto senso do concreto, do objetivo, no sentido mesmo do seu progresso, um povo enfim que se libertara da soma inútil de abstrações e de idealismos, que desencaminharia da realidade os outros povos do mundo.
Mas realmente nunca se pensou nada mais falso. Poucos povos terão tido como o americano uma visão mais “idealista” – no mau sentido – do universo. Poucos terão alicerçado em tão abstratas bases a sua política social e econômica.
Domina todo o idealismo americano um evolucionismo otimista que pertence francamente à categoria dos postulados. Uma ideia de que a humanidade tende sempre, irrefreavelmente, para uma perfeição maior, perfeição que não se define como um determinado estado da vida humana, mas que se acredita estar contido no futuro dos povos, caracterizado mais ou menos pelo desenvolvimento dos meios industriais graças aos quais os homens podem transformar e dominar a natureza. Nada de mais fora da realidade, pelo menos nada de mais construído gratuitamente pelo espírito, sem dados colhidos no exame dos fatos concretos. É Ford, o expoente da civilização americana, quem diz expressamente:
– O progresso humano é indefinido. Todo o esforço para limitar-lhe as perspectivas é inútil, porque a capacidade de inteligência, no decurso dos séculos, irá além do alcance da imaginação.
Se vivêssemos nos anos 3.000 teríamos a surpresa idêntica à do homem da velha Babilônia que acordasse para a vida em nossos dias.
E Ford leva tão longe isso que se pode chamar “o seu sentido místico do progresso’: que declara mais adiante:
– A continuidade do progresso resulta da transmigração das almas.
O que tudo está mostrando é como o otimismo americano encerra toda uma compreensão filosófica do universo, que pode ter as consequências mais extremadas. Concepção filosófica sem a qual não é possível incorporar a mentalidade americana, toda ela resultante de abstrações. Sem o postulado do progresso indefinido, da perfectibilidade contínua da espécie humana, não é possível admitir a mentalidade prática americana, como as suas consequências imediatas de fermentação das grandes empresas e da economia de produção.
É, pelo contrário, procurando uma doutrina de moderação, que o pensamento brasileiro deve definir o seu caminho. As grandes empresas, as fábricas fantásticas como a de Henry Ford, as cidades populosas e cosmopolitas não nos podem interessar.
Precisamos de outros rumos. Pelos quais cheguemos aos fins que buscamos, que não se resumem na superprodução, mas no aperfeiçoamento moral e econômico do homem, o que exigirá muitas vezes o sacrifício da riqueza individual em benefício da felicidade coletiva.
A Razão, 16.07.1931.
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1 Austregésilo de Athayde (1898-1993), jornalista.
2 Henry Ford {1863-1947), industrial norte-americano; pioneiro da indústria automobilística.