CIVILISMO PAULISTA
É da tradição histórica de São Paulo o repúdio aos governos militares. A fibra civilista foi sempre profunda, no povo menos afeito a revoluções e a levantes que existe em todo o Brasil. Nossas revoluções têm sido sempre feitas na caserna, sem a participação essencial do elemento civil, porque o paulista, compenetrado a um ponto extremo do senso da ordem pública, se habituou a respeitar as decisões das urnas e as resoluções do partido, sem se pôr em armas para dirimir em campo raso, os seus conflitos políticos. Foi por isso que eu ouvi há tempos de um político que São Paulo era uma terra sem civismo. Injustiça clamorosa, que se explica num homem habituado a ver discutir pelas armas os litígios de toda política. Para ele, povo que não se arma e não combate na defesa de qualquer prerrogativa é povo sem fibra cívica. O que importa certamente num grave exagero sobre o conceito de civismo, o qual, em sua forma mais aperfeiçoada, implica até a cessação de toda reivindicação armada, e na resolução pela autoridade ou pelas urnas de toda questão política em que empenhe a opinião popular.
São Paulo não chegou ainda por certo à fase definitiva de sua formação cívica. Mas possui esse civismo elevado a um alto grau, e subordinado a um sentimento poderoso, que está na base da nossa tradição política, e que é hoje, sem dúvida, uma das categorias fundamentais do espírito paulista: o civilismo.
São Paulo civilista viu sempre na autoridade o reflexo da sua vida interna, que é de um povo paisano e não de um povo militar. Viu sempre o Governo como um chefe de uma vasta usina em que aqui todos trabalham, construindo, dia a dia, a grandeza do Brasil. Considerou sempre os seus presidentes não como generais de um exército em paz, mas como os supremos técnicos de riqueza e fonte de homens, que aqui alimentam a atividade nacional. Onde o Rio Grande consagra um seu homem político dando-lhe o título de general, São Paulo escolheria qualquer outro pelo qual o elevasse ao nível em que coloca, aqueles que à frente de qualquer campanha civil, entraram para a galeria dos valores sobre que repousa a obra da riqueza ou do poder bandeirante. Nunca, porém, o de general. Porque não é guerreira, mas pacífica, civil e operosa a índole política dos paulistas.
Veio daí talvez uma boa parte da oposição que teve o tenente João Alberto, desde o começo do seu governo. A índole civil do povo paulista desconfiou logo de um governo de militar, supondo que nele não houvesse o espírito administrativo necessário à condução do governo, que fossemos ter a improvisação de um tenente em estadista com todo o corolário de desgraças que acarreta o militarismo.
Desconhecido em São Paulo, o tenente interventor foi julgado apenas um tenente, e suspeitou-se o seu mérito político, negou-se de início o seu tino administrativo, anunciou-se que ele descuraria os interesses públicos, ocupando o poder como uma praça de guerra, para defendê-lo à viva força da avidez dos partidos.
Foi então que o Partido Democrático coordenou uma criminosa campanha nativista, o desagrado de São Paulo pelo tenente interventor. São Paulo cidade de brasileiros de todos os cantos, cidade dos presidentes paulistas de adoção, condenou o governo do pernambucano João Alberto, quando de fato queria condenar o tenente improvisado em governador, que o seu civilismo de todos os modos repelia.
E o tenente João Alberto começou o seu governo nesse ambiente de antipatia e pessimismo unânime pela sua figura. E desde então, nesses nove meses em que agiu, derrubando os partidos impetuosos que se arremessavam contra ele, livrando-se dos facciosismos que o ameaçavam, dentro da própria Revolução, e dedicando-se ilimitadamente ao bem público, o tenente João Alberto revelou ao povo paulista a sua fibra de civil, do político isento do espírito de quartel, a não ser daquele espírito de decisão, de disciplina extremada, que lhe permitiu alijar os maus elementos que parasitavam a situação, mas que foi também fatal ao seu governo, por lhe retirar o apoio de toda e qualquer opinião organizada, deixando-o suspenso entre as iras do P. D. e da Legião Revolucionária, e sob os maus auspícios do alquebrado P. R. P.1
Mas acima de tudo o interventor João Alberto se revelou um civil. São Paulo foi aos poucos encontrando nele aquelas virtudes de espírito, que se habituara a exigir dos seus políticos. E as classes conservadoras se foram chegando ao seu abrigo, recebendo dele a ação administrativa de amparo seguro que a dureza da ocasião exigia.
Agora que o paisano João Alberto sai do poder, a lavoura paulista vai-lhe oferecer um banquete.
Ele esteve à altura do espírito administrativo que a economia paulista reclamava. Em vez do pessimismo agressivo que o acolhera, deixa em São Paulo a gratidão, e, sobretudo, a profunda admiração do povo mais operoso e pacífico do Brasil, por quem lhe refletiu tão bem as necessidades. São Paulo civilista nesse se revê, como em alguém que tivesse aqui passado toda a sua formação.
E só é pena que o Sr. João Alberto tivesse se limitado a querer bem administrar, sem trazer para o Governo do Estado um pensamento construtivo. Sua obra pode assim ser efêmera, pois não atingiu os rumos da política paulista, ficando-lhe o fundo ideológico, o fundo doutrinário, para que pudesse ressoar longamente, nos destinos da província e da nacionalidade.
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1 P. R. P. Partido Republicano Paulista, fundado em 1873 foi extinto com a implantação do Estado Novo em novembro de 1937.
A Razão, 17.07.1931.