San Tiago Dantas

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18/07/1931

TRÉGUA DOS PARTIDOS

Em tempos normais e em democracias perfeitas, a sucessão de um presidente é assunto que deve obrigar as correntes partidárias à mais decidida intransigência. Os interesses públicos inspiram aos partidos escolhas definidas que encarnam os seus pontos de vista, naquela situação e naquele momento. Abrir mão dessas escolhas é abrir mão da própria razão de ser dos partidos. E, vitorioso um candidato, é dever dos que a ele se opunham continuar na oposição, pois aquele candidato irá cumprir um programa contrário ao que pensam irredutivelmente os partidos que o guerrearam.

Tudo isso nas democracias perfeitas, ou quase perfeitas, já que nunca uma democracia pode atingir um grau de realização absoluta. Tudo isso nas horas normais, quando a Nação está em condições de se sujeitar a tal ou qual regime, e não obrigada a um regime único de salvação. Fora daí, toda irredutibilidade é uma insânia dos partidos, fora daí, todo apego a um interesse ou a uma ideia de indivíduo ou de grupo, conduzindo a uma guerra à autoridade, pode ser uma crise contra a Nação. Pode ser um assalto aos direitos da sociedade nacional, por ser a superposição egoísta dos fins de um partido, aos fins supremos dessa sociedade.

Nas situações extremas, sobretudo nessas ocasiões de terrível instabilidade econômica e social que assaltam os povos, a luta dos partidos se apaga e se absorve na grande tragédia que ocupa a cena. São horas de humanidade e de renúncia pessoal, essas em que a Nação apela para a energia de todos e dita os sacrifícios ilimitados. São horas em que o mérito não é renunciar com os outros, mas renunciar mesmo quando os outros vencem, e que impõem os seus desígnios com a contra facção de todos os nossos.

A sucessão da interventoria paulista criou para a intransigência dos partidos uma dessas horas de renúncia. A crise econômica que assoberba o nosso organismo social e político, o crédito que precisa se restabelecer num ambiente de segurança e de paz, e a própria desordem das massas excitadas, que necessita um ambiente de colaboração e de ordem, onde o seu ímpeto desgovernado venha se aplacar, ditam imperativamente essa trégua, sem a qual nenhum interventor poderá superar os problemas da situação.

A série de problemas nascidos do movimento de outubro cria para o Governo novas dificuldades. E repartindo-se entre os problemas da Revolução e os problemas do Estado, a missão dos Governos ainda se torna mais delicada. Vieram os primeiros somar-se aos segundos, pois na antiga República as situações políticas tinham a solidez das coisas consumadas. O veredito das urnas assegurava por quatro anos a ordem, e a onipotência do perrepismo assegurava de avanço a ordem pelos oito anos futuros. Posto no Governo, o presidente tinha diante de si apenas o complexo dos problemas administrativos e políticos do Estado, aos quais a falta de espírito público das classes políticas lhes impedia de atender. Na República Nova, porém, a situação tem a fragilidade dos equilíbrios resultantes da aplicação simultânea de várias forças, todas de intensidade variável. Falta bruscamente uma força, sem que se possa fazer no sistema a correção precisa, e a situação de um interventor que há 24 horas estava inquebrantável derrocará com a mais espantosa facilidade. Isso cria para os interventores uma nova ordem de problemas: os problemas revolucionários (para não dizer partidários), para os quais a sua atenção tem que estar continuamente voltada, pois da resolução deles depende a sua manutenção.

Ao lado desses, que formam a base inevitável de ação dos interventores, estão os problemas políticos e administrativos, ao estudo e resolução dos quais está destinado o seu mandato. Nunca, como agora, foram para São Paulo tão múltiplos e delicados. A crise econômica asfixiando a atividade paulista, pondo no trabalho tormentos e riscos, assoberba a administração do interventor. E os problemas políticos que há decênios se vêm formando, e que a Revolução precipitou, abrem aos olhos da interventoria a crise do Estado e a luta de classes. O Estado liberal democrático brasileiro, a forma liberal-democrática do governo das províncias, exibe à luz meridiana o seu raquitismo diante do vulto das questões religiosas, que dominam e impelem a Nação. A luta de classes, alimentada pelo chômage 1 e pela crise econômica, açulada pelas agitações políticas de praça, proclamada e guiada pelo comunismo  internacional, vem cavar sob a democracia brasileira o abismo, em que uma a uma vão caindo todas as democracias do mundo. E a juventude católica começa a sentir, ainda confusamente, que breve será chamada à luta religiosa, não mais para falar das tribunas e da imprensa, mas para agir nas arruaças e quem sabe se não combates. E uma grande inquietação se apodera das elites mentais de São Paulo, desencontrando pelos caminhos do ideal político mesmo aqueles que o ideal artístico e a vida sibarita aproximará.

No meio dessa borrasca é que hoje navega a nau da interventoria. Toda indisciplina a bordo apressará o naufrágio, toda desordem causará irremediavelmente a ruína.

O novo interventor do Estado encontra-nos num desses instantes agônicos, em que, corno na salvação dos naufrágios, toda indisciplina, todo ato que possa acarretar perigo público, é punido com o sacrifício.

A guerra dos partidos tem de cessar. Não é um momento de normalidade o que atravessamos, como aqueles que, nas democracias perfeitas, justificam as intransigências de partido e as oposições. Lembro-me de uma frase de Nabuco, que cito sempre, 2 e que desde outubro de 1930 não saiu da ordem das nossas cogitações: “Nós estamos à beira da catadupa dos destinos nacionais. E diante dele é tão impossível ouvir a voz dos partidos, como seria impossível ouvir o zumbido dos insetos atordoados, que atravessam as quedas do Niágara”.

O povo paulista tem de cerrar fileiras em torno do interventor que o Governo Provisório, considerando as altas necessidades políticas de São Paulo, nomear. É hora de tréguas para as reivindicações partidárias, esta em que só as reivindicações nacionais têm força bastante para serem ouvidas.

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1 Vocábulo francês: desemprego.

2 San Tiago refere-se ao seu artigo “A extinção do legalismo’: publicado em 1930. Ver p. 29.

A Razão, 18.07.1931.