PRELIMINARES III
Entre a concepção da Sociedade marxista e do Estado nacionalista, colocamos, em nossa nota de sábado, como formas de transição, o Estado liberal-democrático, evoluindo para a Ditadura proletária, e esta, desenvolvendo o seu plano no rumo do socialismo integral.
De fato, o liberalismo democrático, sob o imperativo do desenvolvimento econômico dos povos, prepara, facilita e finalmente efetiva o advento do capitalismo de Estado, conquanto todos os seus princípios e normas se oponham fundamentalmente a isso.
Realmente, a Democracia se separa de uma maneira radical das forças econômicas da sociedade, as quais, agindo por conta própria, se erigem num poder mais alto que o Estado, acabando por aniquilá-lo, sob a forma do capitalismo, e integrando-se, depois, sob a ação inevitável das massas, na expressão coletivista.
A Democracia se separa dos fatores econômicos da Sociedade:
pela sua doutrina do sufrágio;
pelo seu sistema representativo;
pelos limites de atribuições dos poderes
O sufrágio, nos regimes liberais, é universal e se exerce, diretamente, em função do indivíduo (cidadão), e em imediata relação com o próprio Estado. Ao cidadão é facultado escolher os representantes da Nação no Congresso, e, também, em alguns países, como o Brasil, os chefes do Executivo.
Feito um exame de consciência, puramente pessoal, sem nenhuma interferência de interesse profissional, o eleitor deposita o seu voto na urna.
Esse voto tem o mesmo valor quantitativo e qualitativo, para todos os cidadãos: para o plutocrata, possuidor de milhares de contos de réis, e para o sem trabalho, que precisou de um atestado de favor para se qualificar; para o jurista, detentor de uma soma avultada de cultura, e para o semianalfabeto, que desenhou o seu nome para obter despacho favorável do juiz do alistamento. É que a democracia estabelece o principio de que todos são iguais e de que a “vontade gerar: em que se funda a soberania da Nação, é a soma de todas as vontades dos cidadãos maiores, alfabetizados.
Nestas condições, a Democracia não cogita do que representa o cidadão, como força econômica: não lhe importa saber em que situação se encontra o eleitor, nem o que faz ou como vive. É verdade que os títulos de eleitor mencionam a profissão, mas isso é exclusivamente para os fins de identificação para se firmar a suposição de que ele não depende de outrem. O simples fato de estar mencionada a profissão no título, não só supõe que o candidato a eleitor documentou a sua renda, como pressupõe que ele nunca mais perdeu essa renda. Mas essa prova, essa classificação do cidadão sob o critério profissional, não significa, em absoluto, que o Estado se interesse pela sua vida, nem dá ao voto um sentido econômico de classe. E não diz porque o voto de todos os cidadãos vale a mesma coisa. Pressupondo uma identidade absoluta de interesses, o Estado liberal-democrático desconhece os interesses divergentes das classes e por consequência se separa profundamente da expressão econômica da sociedade. Esses fatores de ordem econômica vão agir livremente, organizando-se de um lado, em sindicatos proletários; e de outro, em aparelhos de exploração dos meios de produção, trusts, monopólios, grupos financeiros etc., que tendem cada qual a tomar a decisão real dos negócios; o raio de ação dos governantes democráticos propende cada vez mais a se resguardar sob o império da pressão exercida por essas forças extra-estatais.
Originando-se do sufrágio universal a representação nacional se exprime em órgãos do governo sem nenhuma ligação com os fatores da economia do país. Os parlamentos democráticos, por exemplo, são constituídos por indivíduos teoricamente sem classe, nem profissão, e que não revestem o caráter significativo de interesses econômicos distintos. O cidadão vota sob um critério de ordem geral, e o candidato é um ponto de referência comum a indivíduos que praticamente, exercem funções distintas na sociedade e tem a defender, aspirações praticamente diversas. Os representantes da Nação, produtos da vontade geral, devem, apenas se tornar garantias da manutenção dos princípios em que se funda o conceito da liberdade, dentro do qual todas as forças econômicas devem se expandir. O Estado liberal-democrático, portanto, pelo sufrágio e pela representação, se divorcia fundamente do sentido real da sociedade e deixa de exprimir o país, a nacionalidade, para exprimir tão somente um conjunto de princípios.
Esse divórcio, definido em essência, pelo sufrágio e pela representação, manifesta-se concretamente nos limites de atribuições do poder público.
O poder, no Estado liberal-democrático, expresso na sua forma tríplice, tem por fim garantir os direitos assentes nos princípios de igualdade e de liberdade consagrados pela Revolução Francesa. Em tese, todos são iguais perante a lei, assim como a liberdade de um termina onde começa a liberdade de outro. Essas duas normas supõem, de antemão, que nenhuma condição de existência da sociedade, nenhum imperativo fora do conceito teórico do cidadão e do Estado, podem influir, de sorte que possam alterar o significado e a força dos valores sociais. O cidadão é livre, porque a Constituição lhe faculta liberdade, as leis detalham o exercício dessa liberdade, os juízes consagram esse dom individual outorgado pelas Repúblicas perfeitas, e a força armada efetiva a integração do individuo nos seus supremos direitos.
O Estado democrático desconhece tudo quanto se passe fora desse terreno. Nestas condições, não interfere na vida real da Nação. Não toma conhecimento da luta de classes. Ignora o desenvolvimento das forças econômicas. Aliena a faculdade de dirigi-las, de orientá-las. A sua preocupação única é manter a ordem pública. As organizações de classe podem agir livremente como as organizações do comercio. Do individuo se quer, apenas, a sua qualidade de cidadão. A sua contingencia de homem, de chefe de família ou de membro de uma classe não interessa ao Estado liberal-democrático. Outorgando-lhe plena liberdade, não importa ao Estado a maneira como o individuo se haja para fazer manter a sua capacidade de igualdade na esfera das atividades que pela sua natureza econômica escapam à ação direta do governo. Daí a restrição dos limites das atribuições dos poderes dentro do qual se encastela o Estado liberal-democrático, sem finalidade social, sem finalidade nacional, puramente teórico.
Verificados esses três pontos através dos quais o Estado poderia estar intimamente ligado à Nação, e que constituem exatamente os três pontos onde o liberal-democrático segregou, vincularmente, o Estado das forças nacionais, vejamos, em nossa próxima nota o caráter transitivo que assume a liberal democracia como ponto de partida para a inevitável ditadura de classe, que vigora hoje na Rússia e se delineia nos horizontes de todas as Nações que se originaram da revolução burguesa* e estão vivendo em função dos princípios consagrados pela proclamação dos direitos do homem de 1789.
A Razão, 18.08.1931.