San Tiago Dantas

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19/07/1931

JUSTIÇA DE CLASSES

Nos Estados combalidos, trucidados por lutas interiores contidas a custo, as crises políticas nunca são pacíficas, nem ficam nos limites das rodas oficiosas e dos comentários da imprensa. Fazem deflagrar as revoltas profundas, que a tensão de equilíbrio do ambiente mantinha refreadas. À margem de um governo que muda de uma luta eleitoral que açula os ânimos, surgem as abertas para as reivindicações de todos, os motivos ou os pretextos para a violência e para a luta.

Nos primeiros dias do governo do tenente João Alberto, São Paulo está num momento desses. A vitória da Revolução relaxara os freios do descontentamento popular; em vez da calma risonha do Sr. Washington Luís 1 que chamava a polícia para acalmar os proletários, tivemos diante de nós a crua realidade da luta de classes. Desde então começou-se a ver que havia nas fábricas um grande povo que estava descontente da sua sorte. E que havia na avenida, nos palácios e nos clubes uma pequena classe que usava e abusava da sua força e do seu poder. Viu-se que a burguesia paulista estava diante do proletariado. E que neste se infiltrava a propaganda bolchevista, 2 fazendo a revolução econômica pairar sobre as cabeças como uma ameaça.

Viveram-se horas agitadas, enquanto a crise política, movimentando a sociedade, extremava em posições antagônicas os interesses das classes. Veio, porém, o coronel interventor fazer a sua política de benefícios às classes e de reerguimento econômico. A paz artificial se restabeleceu, e de novo se confundiram as posições extremadas, de novo a luta entrou no seu estado larvário, restaurando o sossego no espírito dos homens da Revolução.

Vem agora a crise provocada pela nomeação do Sr. Plínio Barreto, 3 e pela oposição que lhe fazem os que pedem o general Miguel Costa. 4 Já estão bem definidos os partidos: a ala que apoiava o coronel João Alberto, o Partido Democrático e os estudantes mantêm-se fiéis ao novo interventor indicado; a Legião Revolucionária, 5 por seu lado apoiada na massa grevista que ontem veio do Brás 6 à cidade, lança e sustenta o nome do general. A desordem se generaliza na cidade, miguelistas acesos se declaram já em comício permanente, a praça do Patriarca 7 e o largo da Concórdia 8 enchem-se de um clamor contínuo de manifestações e a greve vai ocupando as fábricas uma a uma, ameaçando perfazer um total de 100.000 operários. Situação de novo alarmante, e que vem mostrar mais uma vez o vulto que as crises políticas podem dar às revoltas larvárias da sociedade.

Ontem nos comícios da Concórdia pedia-se a legenda “8 horas de trabalho”, e oradores comunistas falavam ao lado de outros puramente partidários, obedecendo à tática de propaganda, que manda drenar para os fins do Partido 9 toda a inquietação das massas rebeladas.

E de novo, portanto, a questão social veio à luz, neste grande desequilíbrio político que a renúncia do Sr. João Alberto acarretou. De novo, proletários e burgueses se distinguiram, a ânsia revolucionária irrompeu das massas oprimidas, e a inquietação voltou ao ânimo da burguesia. Não se sabe ainda como o Governo Provisório encerrará a crise. Mantenha ele, porém, o Sr. Plínio Barreto ou ceda aos comícios nomeando o general Miguel Costa, o mais que conseguirá é fazer recolher as revoltas que estão desencadeadas, e que dentro da ordem artificial do Estado democrático não se poderão debelar.

O comunismo não é uma ideologia da massa. É uma ideologia com a qual se lhe pretende prometer umas tantas reivindicações a que ela se julga com direito. As classes proletárias aspiram à justiça de classes. Têm fome e sede de justiça, mas não a querem obter por meio deste ou daquele método de ação política. Não tem convicções socialistas, não aspiram às formas de organização social e econômica do marxismo, nem se insurgem contra os valores fundamentais da alma brasileira, entre os quais estão o cristianismo e a fé nacional.

Quer, porém, a justiça de classes que na sociedade liberal burguesa não se pode realizar, porque onde se deve fazer justiça a duas partes, não se pode dar a uma delas a jurisdição. Não se pode esperar que a justiça de classes se venha a consumar entregando aos patrões a sua realização. Nem mais se pode esperar deixando-a aos empregados. Só um poder superior às classes, com finalidades próprias, mais duradouras e mais altas que as de todas as classes existentes na Nação, pode assumir a função de distribuir a justiça entre elas, organizado o bom sistema de colaboração. Esse poder é o Estado, que o liberalismo democrático alheou de todas as questões nacionais, e que deve ser o organizador e o julgador do trabalho e do capital. Só por ele se restabelecerá a harmonia na sociedade política, e a colaboração deixará de ser a aparência para ser a regra natural no convívio das classes.

O futuro interventor, seja o Sr. Plínio Barreto dos estudantes, ou o Sr. Miguel Costa dos operários e da Legião, encontrará pela frente essa eterna questão que o seu governo tem de resolver. Boa administração e prosperidade econômica são fórmulas anestésicas. Onde foi insuficiente o governo do tenente João Alberto, foi em ter apenas anestesiado os problemas sociais do momento.

Quem não os tratar de frente visando à realidade profunda que encerram, terá se limitado a contemporizar.


1 Washington Luís (1869-1957), político paulista. Foi o 13.0 presidente da República entre 1926 e 1930, quando foi deposto pela Revolução de outubro daquele ano.

2 Comunista.

3 Plínio Barreto (1882-1958), político paulista. Governou o estado de São Paulo por vinte e um dias, em seguida à Revolução de outubro de 1930.

4 Miguel Costa (1885-1959), militar.

5 Legião Revolucionária, também chamada Legião de Outubro. Organização política articulada pelos tenentes da Revolução de 30, logo após a vitória do movimento.

6 Brás: bairro da capital paulista. Aquela altura um bairro industrial, onde residia um grande número de operários, em sua maioria de origem italiana.

7 Praça do Patriarca: logradouro no centro da capital paulista.

8 Largo da Concórdia: logradouro no centro da capital paulista.

9 Partido Comunista Brasileiro.

A Razão, 19.07.1931.