SEPARAÇÃO DE RUMOS
A marcha evolutiva do movimento paredista,1 que durante a semana passada se iniciou, veio afinal dissipar todas as dúvidas sobre o seu objetivo e sobre a sua direção. Os que insistiam em ver no movimento uma atitude partidária da classe operária, pondo-se ao lado do general Miguel Costa na atual crise política, não têm mais o direito de se iludir desse modo, pois já está muito claro que é bem outra a política da greve atual.
Não foi o dissídio partidário que ocasionou o movimento. Até sábado assim se pensava, mas sabe-se agora que foi uma reclamação coletiva dirigida pelos tecelões de São Paulo à patronagem, sobre horas de trabalho e regime de menores e mulheres, que deu origem à greve, primeiro nas fiações, depois nas outras indústrias. A princípio, é verdade, o movimento aparentou uma união perfeita entre os operários paredistas e a Legião Revolucionária: só hoje a cisão está bem nítida, e bem destacados os seus objetivos.
Enquanto a Legião organiza comícios contra o Sr. Plínio Barreto, e em favor do seu chefe o general Miguel Costa, os operários promovem-nos em favor de reivindicações de classe, de medidas trabalhistas sem atenção mais que secundária ao problema de escolha do interventor. É pelo menos o que se deduz dos termos expressos dos manifestos que a Federação Operária vem lançando à classe, e sobretudo da entrevista que concedeu a um dos nossos redatores o seu secretario geral, onde são claramente definidos os pontos imediatos das suas reivindicações.
E isso dá à confusa situação de São Paulo nesta hora um novo panorama, em que as forças se dispõem numa nova ordem, e envolvem problemas da maior complexidade. Ficam em antagonismo irredutível os civilistas do Partido Democrático e da Faculdade de Direito, que pedem a nomeação do Sr. Plínio Barreto, e os miguelistas da Legião Revolucionária, ao que se diz com forte apoio na Força Pública. Ao lado dos primeiros, pela sua solidariedade com o tenente João Alberto, vem colocar-se a política dos tenentes. E mais orientada no sentido da segunda, já pelo feitio oposicionista, já pelo contato frequente nos meetings 2 e passeatas, a enorme força de sessenta e oito mil operários, postos em greve desde sábado.
Dessa situação já dá conta o audacioso manifesto dos estudantes de direito divulgado ontem pelos vespertinos, e em que os rapazes da Faculdade vão se pôr na sua tradicional posição de aliados das classes oprimidas, enfrentando ao mesmo tempo os legionários miguelistas, a quem tratam de “políticos facciosos e grosseiramente burgueses” e de quem se proclamam “adversários naturais”. E contra eles carrega o ímpeto dos partidários do comandante da Força Pública, enquanto o Partido Democrático, das proclamações nativistas e civilistas, guarda uma atitude de reserva que bem se poderá chamar de timorata.
Está pois aberta a luta no setor político paulista. E como assinalei em meu último artigo, mais uma vez as crises políticas, agitando o ambiente político, fizeram surgir os grandes problemas sociais, que se acalmam nos períodos de serenidade e que reaparecem cada vez mais vivos nessas horas de clamor.
Os grevistas de São Paulo só agora, porém, definiram de público, os pontos que reivindicam. O seu movimento atingiu a plenitude, duzentos e cinquenta a trezentos mil operários estarão em greve dentro em pouco, e a opinião pública ainda não se inteirou dos pontos concretos das suas proclamações oficiais. É que as greves como esta se alastram menos pelo conteúdo dos manifestos que pela profunda predisposição das massas. Revelam mais o descontentamento de uma grande humanidade injustiçada, condenada a um regime de pactos unilaterais com a patronagem, em que cede sempre por necessidade, e por sistema, do que a urgência de umas tantas medidas que visam concretizar os seus males. E todas elas são o desencadeamento das energias populares, ansiosas por um regime de justiça e de concórdia, mas incapazes de definir por si as bases e as normas suficientes desse regime.
Se o Governo Provisório quer considerar o caso paulista, não para resolvê-lo, como a força armada lhe permitir, mas para resolvê-lo como o bom espírito revolucionário mandaria, deve atender à importância suprema destas inquietas manifestações de classes proletárias, porque aí está a melhor energia que pode atuar nessa hora de reconstrução moral e política do país.
Dos que se imobilizaram nas posições adquiridas, dos que se constituíram em didatas do regime, e se afizeram a criar repúblicas nos compêndios, insensibilizando-se às grandes pressões do espírito popular, não se pode nem se queira esperar salvação. Há uma diferença essencial entre o espírito político das massas guiadas pelo entusiasmo e pelo sofrimento, e o espírito político dos que jogam, calmamente, as peças no tabuleiro dos partidos para conservar esta ou aquela peça, e preparar esta ou aquela situação. O interventor que vier com o espírito dos últimos não sentirá a energia destas agitações populares. Virá talvez serenar o Estado. Virá com o prestígio do seu nome unir o Estado. Mas nada disso adianta, porque toda serenidade e toda união serão artificiais, enquanto perdurar um regime de desequilíbrio social como este em que vivemos.
O governo que mantém a ordem pública porque está fortemente apoiado nos quartéis e nas guardas é um simples governo de polícia. O homem que une os partidos e serene as massas, é apenas alguém que reúne as esperanças de um momento e que dura enquanto essas esperanças se consomem.
Diante de milhares de grevistas que estão nas ruas pedindo proteção e justiça para a sua situação de desamparo, o governo não tem mais direito de apelar para a política personalista de conclaves partidários; tem de se voltar para a massa inquieta, colher a energia da sua rebeldia, para derrocar com ela as bases condenadas da nossa velha construção política, e lançar outras subordinadas a novos planos. Mas, sobretudo, os homens do governo não podem deixar que só os exploradores comunistas entrem em contato com o proletariado desgovernado. Pois que a sua sede de justiça os lançará ao lado de quem prometer saciá-los. E se não vier o regime de justiça que eles esperam, o ânimo de vingança os impelirá para o bolchevismo, que é para onde a tática do partidarismo internacional, os está continuamente chamando.
Salve o Governo Provisório a Revolução de outubro do caminho da inutilização completa a que os sucessos de São Paulo a estão levando. Se a questão social perdurar, acesa ou dormida, no ambiente político que se vai construir, pode-se já prever que outra revolução se irá formando na consciência das massas brasileiras. E queira Deus que essa revolução ainda se faça no sentido de aniquilar o Estado liberal que nos governa, e que assiste com um indiferentismo criminoso, à revolta e a confusão das forças nacionais. Pois precisamos repor a Nação no Estado. Este não poderá ficar alheio aos grandes interesses de classes, que convulsionam a sociedade.
Os operários de São Paulo, que estão pedindo reduções de aluguéis e de preço de gêneros, aumento de salário e regulamentação do trabalho, no fundo só querem, só desejam uma coisa: que o governo tome a si com isenção de ânimo e espírito de justiça, a direção das atividades de classe e o julgamento dos seus conflitos.
Livre-nos, porém, a ação dos governos da tática anarquista e mesmo da comunista, que ameaçam se apoderar deste movimento de classes.
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1 Grevista.
2 Vocábulo inglês: comícios.
A Razão, 21.07.1931.