San Tiago Dantas

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23/08/1931

AS DUAS LAVOURAS

Os jornais divulgam o manifesto-programa com que a lavoura paulista1 encabeçará um trabalho profundo de organização de classe, para defesa dos seus interesses. Ao invés do partido, que se temia ver surgir do novo rumo que vem tomando uma associação de caráter sindical, agindo no campo puramente econômico, e apenas querendo interferir na ordem administrativa, quando estejam em jogo os seus problemas internos.

Do ponto de vista da organização econômica do Estado de São Paulo, estamos à frente de um acontecimento auspicioso. A Lavoura, base vital da civilização econômica paulista, vai enfim reunir em bloco as suas energias dispersas tanto tempo fragmentadas pelos partidos e pela política, e vai assumir diretamente, como lhe cumpre, a tutela dos seus interesses e a defesa dos seus produtos.

Deve grandemente ao coronel João Alberto, a sua administração tão atenta aos problemas materiais do nosso Estado, esse surto de vida de que aparece dominada a Lavoura, e que vem orientar em um sentido as duas dispersas manifestações.

Não aparece, contudo, a classe rural paulista reunida num só grupo, e arvorando a bandeira da sua sociedade tradicional.

Vem representada por uma corrente nova, desligada da Sociedade Rural de São Paulo, agindo mesmo com a sua pública reprovação, e encarnando precisamente a força mais móvel da classe de plantadores, a que pode sobrepor às cautelas e praxes das sociedades inexpressivas um espírito mais ligeiro de construção.

Contra essa força está, porém, a autoridade da Sociedade Rural, onde certamente predomina um intenso colorido democrático, mas que à parte isso ainda representa a aristocracia dos nossos plantadores. Conseguirá a sua autoridade contrastar o ímpeto da “Comissão de Organização da Lavoura”? A Rural é, pelo seu espírito conservador e pelos seus métodos burocráticos, uma associação dotada de pouca mobilidade, incapaz de pronunciamentos audaciosos e rápidos, condenada, portanto, a silenciar muitas vezes, na hora mesmo em que os interesses de classe mais estão clamando. A Comissão Organizadora, que retrata o espírito do recente Congresso que aclamou seu patrono, o coronel João Alberto, é uma força pelo contrario dotada de energia renovada numa hora como esta, mas sem a autoridade rural, que de fato espelha o cerne e a tradição dos plantadores.

Duas lavouras estão, pois, disputando a representação e a chefia da classe. Pode ser que uma consiga com que o seu prestígio aniquile o surto organizador que repercute na outra. Mas pode ser que essa outra leve avante a sua empresa, e nesse caso teme a si, a associação que com o seu manifesto vão fundar, a autoridade que hoje conserva a velha Sociedade Rural.

Nesse último caso teremos dentro do Estado uma organização que se poderá tornar poderosíssima. E que trará aos que duvidam da vocação sindical das nossas forças produtoras o primeiro e cabal desmentido.

É preciso, porém, que o governo de São Paulo não conserve diante dessa formação econômica a que assistimos o indiferentismo absoluto que vem revelando. Pois assim como não convém que a Lavoura se conserve fraca e sem voz no tumulto dos interesses políticos e econômicos, não convém também que a sua voz se erga com tal força que abafe a das outras classes não organizadas ou mais pobres. Não se compreende governo de São Paulo sem a opinião da Lavoura, mas os interesses dela não são os únicos, nem mesmo os mais altos que se tenha de considerar.

O que o governo de São Paulo devia fazer era desenvolver sob o exemplo da Lavoura uma ativa política de organização sindical. Assim se teriam mais cedo ou mais tarde as forças de produção dentro de um quadro orgânico, e então se poderia vir a fazer a legislação que o Sr. Lindolfo Collor2 está tão prematuramente realizando na sua pasta.

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1 San Tiago refere-se provavelmente à Comissão Organizadora da Lavoura, criada depois da Revolução de 30, e que rivalizou com a Sociedade Rural Brasileira criada em 1919, em São Paulo.

2 Lindolfo Collor (1890-1942), político gaúcho. Ministro do Trabalho de 1930 a 1932.

A Razão, 23.08.1931.