VIDA MUNICIPAL V
Pode-se dizer que, no Brasil, nunca houve partidos nacionais, porém, uma confederação de partidos municipais. Durante a Monarquia, o funcionamento do sistema parlamentar ainda permitia uma ilusão, parecendo que, realmente, duas grandes correntes, os liberais e os conservadores, exprimiam o sentido geral da política brasileira. Mas, desde que foi proclamada a República, logo se viu que esses dois partidos não passavam de um mero artifício, utilizado para os fins objetivados pelo regime.
Com a República vieram imperar, destacados, sem ligação com qualquer outro elemento da vida nacional, sem nenhum liame, nem com o stado, nem com a Nação, os partidos municipais.
Seus programas empíricos, de realização imediata de melhoramentos locais, criaram as personalidades empíricas dos políticos que, saindo do seio desses partidos, se projetaram na política dos Estados para dali se projetarem no cenário federal.
Sua incapacidade de generalizar, de enxergar problemas além de seus acanhados limites, imprimiu às figuras de políticos que neles fizeram seu primeiro estágio, para só mais tarde exercerem sua atividade no Estado, uma mentalidade incapaz de conceber grandes planos, incapaz de agir em nome de doutrinas.
Seu egoísmo, em face dos interesses da zona, modelou o político que, passando a agir nas esferas mais altas do governo estadual, apenas transportou dos âmbitos do município, para ampliá-lo, um sentimento de bairrismo que agravou a luta entre os Estados.
E, entretanto, a vida municipal é uma realidade tão flagrante, tão viva no Brasil, que não a poderemos desprezar, quando pretendermos estudar os fatores que têm influído para a cristalização da nossa fisionomia política.
Temos visto como se organizam os partidos municipais. Temos observado como o partido montado na Capital age em relação a eles. E de que maneira consegue a unanimidade dos sufrágios, nas eleições de caráter estadual.
Essa unanimidade é obtida pela contemporização, que consiste em repetidas promessas ao grupo “de baixo” na cidadezinha do interior. E essas promessas, nos tempos do P. R. P., não eram feitas com insinceridade. Pois existindo dois políticos em cada zona, os quais disputavam entre si a hegemonia regional, acontecia que, quando um possuía o diretório reconhecido numa localidade, o outro orientava o partido da oposição. E este, mesmo quando demorava a solução para o seu caso, sempre nutria a esperança de que o seu patrono, de uma hora para outra, galgasse uma grande posição que o tornaria, imediatamente, o chefe incondicional da zona.
Muitas vezes acontecia que em um dado município operava-se uma cisão dentro da própria oposição local. Eram os que desanimavam, os que não acreditavam mais. Tornavam-se, então, os elementos captáveis pelos candidatos extra chapa às eleições. Quando grande era o número desses eleitores, elegia-se um deputado estadual pelo primeiro turno.
Em São Paulo, dominava o P. R. P. discricionariamente, manobrando com esses elementos da política do hinterland,* quando surgiu o Partido Democrático.
Este partido, como o seu antagonista, teve de procurar sua base na vida municipal. Foi nos municípios onde já havia elementos descrentes de conseguir o poderio local, que o Partido Democrático organizou diretórios. Estes nunca visaram a “republicanização da República”, como se dizia. Nunca se interessaram por programas, por ideias gerais. Aderiram porque já estavam convencidos de que dentro do P. R. P. não conseguiriam mesmo os cargos municipais que aspiravam. A esses, juntou-se tudo o que havia nos municípios de permanentemente revoltado, contra tudo e contra todos. E foi assim que o Partido Democrático, trazendo embora muito afastado das realidades nacionais, das realidades mundiais e dos conceitos mais recentes do Estado e do Governo, um programa que, do ponto de vista liberal, não se pode dizer que não fosse perfeitamente respeitável, teve a alicerçá-lo o mesmo barro humano e nacionalíssimo que estruturava os fundamentos do P. R. P.
Idealismo utópico, sonho romântico, fosse o que fosse, o Partido Democrático agitava uma bandeira que inscrevia nas suas dobras grandes preocupações de ordem geral. E, no entanto, os seus adeptos, os seus diretórios eram da mesma massa dos partidos captados e industrializados pelo P. R. P. nas cidades do interior do Estado.
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* Vocábulo alemão: interior do país.
A Razão, 25.08.1931.