San Tiago Dantas

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26/07/1931

JOÃO ALBERTO

O tenente João Alberto, que ontem regressou ao Exército, de cujo seio a política o tirara, tem sido talvez a figura que maior discussão vem provocando na imprensa desde a República Nova. Jornais adversários trataram- no como um aventureiro, egresso das casernas sublevadas para correr a aventura do poder, sem outra preocupação de estadista que não fosse defender o seu posto dos assaltos repetidos dos políticos insatisfeitos; jornais favoráveis fizeram dele uma figura que havia conquistado direitos imprescritíveis ao poder revolucionário graças aos seus serviços à Revolução. Nem uns nem outros, evidentemente, conseguiram dar a justa apreciação da sua obra. Nenhum deles, posto no próprio cenário do seu governo, pode medir precisamente a extensão da obra e o valor do homem. Mesmo a opinião popular que lhe foi tão injusta, quando a agitavam as campanhas da má vontade, não redimiu com a consagração dos últimos dias os seus erros profundos sobre ele. Pois é difícil que a opinião pública vazada nas paixões partidárias passa cobrar tão depressa a serenidade e a distância para julgar tudo aquilo que há pouco podia apenas sentir.

Mas para o historiador do futuro, a obra do tenente João Alberto na interventoria de São Paulo terá pouca importância. Esse moço de trinta e três anos, que terminado o movimento armado deixou o comando das suas tropas, e tomou audaciosamente a direção do maior Estado da União, foi um administrador impassível que fechou os olhos aos problemas políticos que encerrava o seu mandato, e tratou apenas de erguer, como um técnico, o organismo econômico e administrativo que lhe entregavam, dilacerado de crises profundas e problemas multiformes. Sua atividade notável veio recair toda sobre a superfície dos casos paulistas. E da sua estupenda gerência, feita numa guerra contínua e numa hora crítica, vieram para o Estado incontáveis benefícios. Mas se o seu mérito tivesse sido apenas esse – de atender à síncope que acometera o Estado, na hora da Revolução, seu nome não iria interessar mais tarde aos historiadores da Revolução Brasileira. Iria se alinhar na galeria dos que governaram São Paulo, e teria as referências que o seu alto acerto administrativo exigiam. Nesse dia 25 de julho de 19311, seu nome desapareceria das crônicas públicas. O tenente teria apenas o anonimato glorioso, que só os verdadeiros soldados conseguem nos quartéis.

Mas não será só esse o trabalho dos historiadores. O tenente João Alberto é uma figura que se impõe muito mais à observação. Nela residem virtudes excepcionais, postas à prova na hora das armas e na hora do governo, que dele fazem o homem mais curioso e inesperado que nos trouxe a Revolução. O revolucionário de 1924, da Bateria de Artilharia de Alegrete, o comandante das marchas no sertão de Luiz Carlos Prestes,2 o exilado que além das fronteiras exerceu corajosamente a sua profissão de engenheiro, normalizando e provendo a existência, o conspirador de 1930, que se tornou logo um dos eixos da conspiração e que representou a autoridade moral suprema sobre chamados revolucionários puros, o comandante da Capela da Ribeira, ânimo da disputa armada, surgiu de súbito em S. Paulo para ocupar o cargo de interventor, sem conhecer o meio, desconhecido por ele, e logo se chocando contra a desconfiança popular.

Foi acusado de comunista, de militarista, de antipaulista. Nada disto era impossível que ele fosse, pois comunistas vieram a se tornar muitos dos que fizeram a Revolução de 24, e depois no exílio acompanhara o seu chefe, mesmo quando ele deu o passo trágico que pôs termo à sua ascendência sobre os companheiros. Militarista, era uma coisa de que bem se podia suspeitar um revolucionário de 1922 e 1924, agitador das casernas, sem nenhuma experiência administrativa. Antipaulista era também o seu atributo possível, pois São Paulo recebera o movimento de outubro muito como uma afronta regional, e era lícito que visse no pernambucano João Alberto uma representação dessa afronta. De modo que todas as suspeitas podiam atingir o interventor.

E recaíram sobre ele com inclemência, repelindo-lhe a presença, e condenando-lhe previamente a gestão.

Todo esse ambiente, contudo, não influiu ao que parece no espírito do coronel. Seu espírito reto não se intimidou uma só vez ao clamor das massas, nem lhe quis dar credenciais do seu governo. Vinha-lhe o mandato do chefe da Revolução, do Sr. Getúlio Vargas. Perante ele eram escusadas essas provas. Ao povo de São Paulo daria o resultado da sua administração dedicada, e as provas posteriores das suas intenções.

Nesse pensamento do coronel João Alberto está a sua alta qualidade de estadista, a coordenação do senso de hierarquia com a melhor compreensão do espírito público. Antidemagógico, não cortejou a popularidade, e levou tão longe essa virtude, que por ela tocou o seu grande erro, que foi o desprezo de todos os partidos. E o militar que trouxe consigo um senso tão objetivo de hierarquia foi o menos militarista dos políticos, criando a autonomia entre os departamentos do seu governo, entregando-os a técnicos, e fazendo do poder discricionário, de que estava investido, uma simples arma da justiça e da lei. O coronel João Alberto foi o interventor a quem não se acusou de uma arbitrariedade. Foi tão sereno como um magistrado, de tal modo que hoje, com o governo do Sr. Laudo de Camargo, ninguém espera mais ordem e mais lei.

E o comunista passou francamente à legenda, pois não se pode induzir dos seus atos, nenhum indício a esse respeito. Ele foi ao mesmo tempo protetor de interesses burgueses e de reivindicações proletárias. Seu espírito, que não agiu em pleno sobre os problemas sociais, no pouco que fez mostrou mais o pensamento de um nacional-socialista, do que de um comunista ou de um liberal. E quem sai de São Paulo sob a aclamação da lavoura e da indústria, não pode ser suspeitado de agir mesmo remotamente contra ele. Aliás, é aqui que nos falta com que instruir um juízo doutrinário sobre o Sr. João Alberto. O comandante revolucionário procurou apenas meter ordem na administração desgarrada, e nisso ficou.

Mas da sua personalidade todos nós sentimos que os recursos são muito maiores, e que nesse tenente ajudante de ordens do ministro da Guerra estará um grande estadista, que um outro meio, e uma outra situação, teriam feito aparecer.

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1 Data em que João Alberto deixou a interventoria no estado de São Paulo, cargo para qual fora nomeado em dezembro de 1930.

2 Luiz Carlos Prestes (1898-1990), militar. Líder do Partido Comunista Brasileiro.

A Razão, 26.07.1931.