PANORAMA I
Não queremos louvar, nem condenar. Preferimos expor. Esta nota será uma espécie de levantamento cartográfico da situação política e social do Brasil. Os mapas não encerram comentários, nem juízos, são meros lineamentos.
Vejamos o estado de espírito das populações brasileiras, após a Revolução. É um fenômeno complexo. O mais complexo do continente. Talvez um dos mais complicados do mundo.
Politicamente, o Brasil de hoje apresenta as seguintes diferenciações – Amazônia, Nordeste, Bahia, Minas Gerais, Capital Federal, São Paulo e Rio Grande do Sul. São sete cores distintas, abrangendo as vinte e uma unidades da Federação. São expressões absolutamente diversas de mentalidade, de aspirações, de tendências, de necessidades.
A Amazônia compreende os Estados do Pará, do Amazonas e o Território do Acre, o norte de Mato Grosso e de Goiás, é a região mais vasta, de população menos densa, com dois núcleos civilizados (Manaus e Belém), vastas florestas, campos desertos, rios desconhecidos, tribos de índios, distâncias imensas, onde o homem, desarmado de recursos técnicos e dos capitais necessários à mais formidável das empresas, não conseguiu ainda dominar a Natureza, e se sente totalmente desamparado no seu drama secular. Toda essa zona tem uma mentalidade própria, de segregação do Brasil. O problema que ali se apresenta é o da utilização das possibilidades da terra em benefício do homem. E, portanto, nessa vasta proporção do continente sul-americano, o dominador será o que dispuser de meios técnicos para dar finalidade social às reservas naturais. E, neste momento, eis um tema para a nossa profunda meditação.
Estará em nossas mãos dar uma diretriz social e política a essa desmedida e bárbara extensão territorial, onde o homem brasileiro está completamente desamparado? Como teria influído ali a Revolução de 1930?
O Nordeste é, talvez, o que há de mais fortemente brasileiro. Como índice de sua grandeza, ele nos oferece a figura expressiva do cangaceiro. O Nordeste, abrangendo os sertões causticados pela seca, distingue-se, principalmente, pelo seu fatalismo messiânico, pelo seu feiticismo panteísta, pelo seu espírito de aventura, de liberdade selvagem, pela sua capacidade de sofrimento. Se a Amazônia revive ainda em nossos dias a consciência social do período das minerações e da caça ao índio, o Nordeste mantém o sentimento feudal dos aglomerados em torno do “senhor de engenho”, o estado de espírito das pequenas povoações sobressaltadas pelas sortidas dos bandoleiros, a concepção belicosa da vida, que se traduz nas lutas de famílias, nos assassinatos, nos conflitos entre esbirros desalmados e heróis do sertão. E o dominador daquela ardente região tropical será o que puder canalizar, num sentido político, uma obra de construção social, o imenso potencial de energia sem aplicação do Nordeste. Como teria influído ali a Revolução de 1930?
Possivelmente, se a Amazônia espera um “bom patrão’: o Nordeste aguarda um “bom chefe” um condottiere1 que tenha qualquer coisa do Padre Cícero e de Lampião. Na impossibilidade de encontrar um vivo, o Nordeste está desabafando o seu pendor público religioso, feiticista e guerreiro, aventureiro e imaginoso, na sublimação de um culto póstumo a João Pessoa,2 que não tardará em se concretizar nos amuletos sebastianistas das liturgias bárbaras do sertão. Que terá feito, senão epidemicamente, a Revolução no Nordeste? Como será possível à obra meramente administrativa dos Interventores do Consulado do Norte penetrar aquele grande problema social?
Como podemos julgar o Nordeste pela realização que fulge em Recife, mas pelo próprio sentimento de partidarismo político, que, indo buscar sua origem mais remota no [ —] feudal [—] virá expandir em lutas facciosas nas capitais da região nordestina, imprimindo um caráter de corrosiva odiosidade às campanhas artificialmente rotuladas de democráticas …
Mas abaixo, a Bahia tem um caráter muito próprio, como mentalidade política. A base de toda a sua vida cultural e cívica repousa na realidade social de suas zonas sertanejas. A Bahia criou no litoral uma mentalidade clássica, estruturada pelo latim que aprendeu desde quando foi metrópole intelectual da Colônia e animada pela vibração retórica dos sermões que ouviu, durante largo período histórico, nas suas igrejas numerosas. Criou-se ali o gosto pela linguística, pelas exterioridades das formas do pensamento. Em poesia, deu Castro Alves, o condoreiro; em política, deu Ruy Barbosa, o orador. E deu, também, o Sr. Seabra.3 Todos com um culto respeitoso pela Democracia, ou antes, pelas formas lineares da Democracia. A sua política foi sempre liberal, democrática, civilizadora, o que não impedia a Ruy Barbosa de pedir o auxílio de Horácio Mattos4 e penetrar em canoa aos recessos do sertão, como o Sr. Seabra de bombardear S. Salvador. E essa mentalidade é, ainda, a da Bahia de hoje: a marcha paralela entre duas expressões sociais contrastantes, que ora se ligam, por interesses práticos comuns, ora se dissociam, para mergulhar uma, no seu século XVII, e outra no seu século XIX.
E Minas Gerais avulta ao centro, como o enigma das montanhas. “Minas, a liberal”: denominaram-na uns; “Minas, a conservadora”: apelidaram-na outros. E Minas Gerais não é nem liberal, nem conservadora. Ela é, principalmente, mineira. Minas é uma grande fazenda agrícola e pastoril, com interesses administrativos na República. A orla industrial que a circunda não lhe tira esse caráter fundamentalmente agrário. As suas cidades crescem ao centro de lavouras ou pastagens. E, como dispõe de meios de comunicação mais fáceis do que a Bahia ou o Nordeste, ela realizou a fusão integral dos elementos do campo e da cidade. E criou a identidade de interesses dentro do Estado, de sorte que se tornou a expressão mais homogênea dos aglomerados sociais do país. Nunca as lutas partidárias estaduais assumiram ali um caráter de separação profunda. É que, se há interesses divergentes nos municípios, não os há na linha diretora da política do Estado, muito menos da orientação na política da República. Os interesses são comuns e profundamente estaduais, como acentuou o Sr. Arthur Bernardes, em discurso no Senado, declarando que a Aliança Liberal não tinha princípios e que ele a acompanhava, para acompanhar o seu Estado. Essa unidade de pontos de vista entre os políticos mineiros, que colocam o seu Estado acima dos princípios segundo a concordância tácita do Sr. Antônio Carlos, que não assumiu na ocasião uma atitude, pelo menos de reprimenda ao Sr. Bernardes, demonstrou que, politicamente, a mentalidade mineira é diferente da paulista, onde os partidos, na mesma situação, colocaram os princípios acima do seu Estado.
Como teria influído em Minas a Revolução? Teria modificado essa mentalidade? Continuará Minas sua política empírica, estadualista, a tratar de seus interesses próprios?
Continuemos amanhã o bosquejo desse grande panorama. Apreciando o aspecto geral do Rio Grande e da Capital da República. E deixemos, para finalizar, São Paulo. Porque é São Paulo o mais revolucionário dos Estados, que dará, de agora em diante, e já não haverá forças que o detenham, o sentido fundamental da política brasileira, possivelmente educadora inexorável da marcha sul-americana.
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1 Vocábulo italiano: Líder.
2 João Pessoa (1878-1930), político pernambucano.
3 José Joaquim Seabra (1855-1942), político baiano.
4 Horácio Mattos (1882-1931), chefe político no interior da Bahia.
A Razão, 31.07.1931.