San Tiago Dantas

Discurso proferido a 12 de dezembro de 1945 na cerimônia de colação de grau dos bacharéis da Faculdade Nacional de Direito.

 Meus caros bacharéis:

Terminam hoje os vossos anos de aprendizado, decorridos em meio às mutações profundas que a guerra trouxe aos destinos do nosso povo e da própria civilização ocidental. Vossos estudos se desenrolaram, no recesso da nossa Academia, enquanto se operavam, em tempo acelerado, essas mudanças. Vossa formação recebeu, consciente e inconscientemente, os benefícios e os malefícios da atmosfera de crise, engendradora de dúvidas, de opções apressadas, de perda de confiança, e também de objetivismo, de curiosidade, de meditação.

Trazendo-vos até às portas da escola para vos dar as despedidas dos vossos professores, quero associar-me ao vosso exame de consciência coletiva, e dizer-vos o que nós, homens da geração anterior, esperamos e confiamos da vossa geração. Hei de falar-vos com a franqueza que sempre coloquei no que vos disse, e haveis de ouvir-me com a independência que sempre encontrei e amei em cada um de vós, e que foram, uma e outra, o fundamento tácito do pacto de amizade ao qual devo o júbilo deste paraninfado.

Deixais na Faculdade de Direito, junto aos vossos mestres e colegas, o renome de uma turma excepcional. Cada ano que passa, são lançados às carreiras jurídicas bacharéis de mérito; mas não é frequente assinalar-se, como entre vós, o alto nível médio de preparo, e a deliberada vocação jurídica. Partis, assim, portadores das melhores esperanças da nossa Casa, e onde quer que a vida pública e profissional vos reclame, podeis estar certos de que os nossos votos vos acompanham e de que os nossos olhos exigentes estão postos sobre vós.

Não será, porém, leve a vossa tarefa. O arsenal de princípios, de regras e métodos, que, em seu conjunto, constitui o Direito, vós não podeis esperar que vos seja dado simplesmente aplicá-lo; na verdade, tereis de defendê-lo. Essa defesa não consiste na propaganda dos ideais jurídicos, nem na formação de ligas ou partidos, que velem sobre o comportamento do poder público para denunciar com presteza os atos de arbítrio ou as violações de princípios; nem consiste mesmo em manter, através do estudo e da vida profissional, o culto do Direito, para que a fidelidade de uns poucos sobrepuje o ceticismo, ou a indiferença do grande número.

Se queremos defender o Direito, temos de saber, primeiro, o que o ameaça; e temos, depois, de examinar, sem ideias preconcebidas, o que ele pode representar na solução dos problemas sociais de hoje, desde o problema do Estado ao das relações humanas, especialmente das que se referem à produção e distribuição de riquezas.

Discurso proferido a 21 de dezembro de 1957, na cerimônia de colação de grau dos bacharéis da Faculdade Nacional de Direito.

Magnífico Reitor
Senhor Diretor
Senhores Professores
Meus jovens colegas

Esta antiga cerimônia, com que se encerra a vossa vida acadêmica, dá azo a sentimentos contraditórios. A alegria do triunfo alcançado nos estudos não apaga a nota de suave nostalgia, com que o vosso espírito já se volta para esses cinco anos vividos entre os muros da nossa Escola e a essas emoções se vêm somar as inquietudes de quem dirige os passos para os caminhos ainda indecifrados da vida profissional.

Alegria, saudade, inquietude dão ao momento que estais vivendo singular intensidade. Em vão se pensará que esse episódio se atenua com o repetir-se na sequência ininterrupta das gerações acadêmicas; para todas é culminante, idêntico e imutável quanto ao seu aspecto humano, mas sempre novo e irreproduzível pela imagem diversa que dele projeta cada época, e mesmo cada instante, na consciência de uma geração.

Participo da vossa alegria pelo triunfo alcançado nos estudos. Nos quatro anos, para mim inesquecíveis, que durou o nosso convívio, ao longo dos quais cresceu entre nós a confiança e a amizade que quisestes consagrar neste paraninfado, pude ver desabrochar a vossa vocação jurídica, afeiçoar-se o vosso raciocínio à técnica da aplicação do Direito, e amadurecer sob a mais grave das disciplinas metodológicas a exuberante juventude da vossa inteligência. As turmas de uma Faculdade, quando nela ingressam, são arranjos casuais, determinados pela coincidência cronológica da conclusão dos cursos secundários. Não tarda, porém, que esse conjunto heterogêneo adquira uma unidade, e evidencie certos traços morais e intelectuais, que o individuam no confronto com as turmas contemporâneas.

Mostrou-se a vossa, desde cedo, discreta nas atitudes, concentrada nos estudos, e marcada por um senso grave de responsabilidade, que antecipava a seriedade com que vos dirigis agora para os encargos da profissão. A vida acadêmica não foi para vós um pretexto para a existência dispersiva ou um cenário para a atividade política. Participastes com civismo dos acontecimentos que assinalaram, nesse lustro, a vida pública do país, mas não deixastes de ter a atenção sempre presa aos estudos e de marcar na Faculdade a vossa passagem por índices elevados de aproveitamento intelectual.

Não seria lícito dizer que a Faculdade vos deu os instrumentos mais adequados à formação da cultura jurídica. Os outros mestres que vos ministraram lições foram professores eminentes, aos quais quisestes manifestar vosso reconhecimento abrangendo-os a todos na homenagem prestada neste ato de formatura. Mas a crise do ensino jurídico transcende a qualidade dos que o professam, e tem raízes mais profundas em problemas da nossa cultura e em transformações da sociedade.

 

Aula inaugural dos cursos da Faculdade Nacional de Direito, em 1955

Agradeço muito desvanecido ao ilustre diretor desta Faculdade a honrosa incumbência, que me conferiu, de proferir a aula inaugural de 1955. Proponho-me dar desempenho a ela, tratando da educação jurídica e dos problemas do ensino do Direito entre nós, para os quais desejo oferecer, como simples ponto de partida para debate mais amplo, um esboço de solução.
O problema do ensino jurídico pode ser tratado como projeção, em campo mais particular, do problema geral do ensino superior, ou do problema da educação em todos os graus.
Não é esse, entretanto, o ponto de vista de que pretendo encará-lo. Pretendo discuti-lo como um aspecto ou projeção da própria cultura jurídica, e para isso examinar, primeiramente, o papel do Direito e da educação jurídica na cultura de uma comunidade.
SOCIEDADE E CULTURA
As sociedades se formam, assumem características e peculiaridades, e conseguem manter-se e expandir-se ao longo do tempo, graças aos meios de controle com que subjugam, de um lado, o mundo físico, que as rodeia, e do outro lado, o mundo social e humano, de que são formadas. Adquirindo o conhecimento dos fenômenos naturais e fixando processos para neles intervir objetivamente, orientando-os e captando-os em seu proveito, a sociedade desenvolve o que podemos chamar os seus controles tecnológicos, graças aos quais logra dar resposta aos problemas que lhe são lançados, como desafios, pela natureza. Adquirindo, por outro lado, o conhecimento do próprio homem, penetrando no seu mundo interior e cunhando normas para disciplinar e orientar subjetivamente a sua vida individual e comunitária, a sociedade desenvolve o que podemos chamar genericamente os seus controles morais, graças aos quais mantém a própria estrutura e consegue governar o emprego daqueles meios de domínio da natureza.
O acervo dos controles tecnológicos e morais constitui a cultura.
Se compararmos duas sociedades diversas, traduzindo dois tipos de civilização, verificaremos que muitas vezes numa delas se avantajam os controles éticos, sem que paralelamente se desenvolvam os tecnológicos. Foi o que sucedeu na civilização medieval, quando a sociedade contou com um arsenal de controles éticos superiormente desenvolvidos, ao mesmo tempo que decaíam os controles tecnológicos em relação à cultura anterior.
Outras vezes — e é o que sucede nos tempos modernos— expandem-se além de todos os limites anteriormente conhecidos os controles tecnológicos, ampliando o domínio do meio físico pela sociedade, mas não se desenvolvem paralelamente, antes declinam, os controles éticos indispensáveis ao próprio governo do novo poder do homem sobre a natureza.

Discurso proferido na sessão magna de 25 de outubro de 1941, comemorativa do cinquentenário da Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil, em nome da Congregação de Professores.

São os aniversários ocasiões propícias à meditação e ao julgamento de si mesmo. As instituições que envelhecem — como os homens — fazem nestas grandes datas uma pausa no tumulto das seus dias, e recolhem o olhar pousado nas tarefas externas, para concentrar a consciência no exame do seu próprio destino.
Hoje completa o seu cinquentenário a nossa jovem e gloriosa Academia. E se por um dia se suspende o nosso labor, é para que possamos, reunidos nesta doutoral, meditar sobre o destino da instituição viva que com os nossos alunos encarnamos, e não só sobre o seu destino cumprido, como sobre o seu destino a cumprir, procurando através dele conhecer o sentido, o útil e o inútil das nossas próprias existências.
Num mundo que se transforma tumultuosamente, não só nas formas aparentes como em toda a sua ordem fundamental de valores, o espírito humano vive num perpétuo examinar-se.
Nenhum estudo, nenhum ideal, nenhum programa; nenhum organismo, profissão ou atividade, está bem justificado aos nossos olhos se não o sentimos radicado no futuro, se não podemos ter os sinais e a garantia da sua sobrevivência às transformações que passam.
Essa inquietação com o destino — próximo e distante — das coisas e das ideias, esse temor dos compromissos com valores efêmeros, é por certo um dos aspectos dramáticos e, ao mesmo tempo, fecundos do espírito moderno. Toda cultura aspira a durar. Pode dizer-se mesmo que a cultura não é senão um esforço para vencer as contingências do tempo e instaurar uma ordem que sobreviva à marcha incessante da história, que domine e absorva o novo dos acontecimentos. Quanto maiores, quanto mais rápidas, quanto mais vastas são as mudanças, quanto mais velozmente se transformam as sociedades e os homens, mais se exaspera, no plano da cultura, a ânsia de durar; e indagar pelo destino de cada instituição, de cada sistema, de cada coisa, torna-se o problema capital a que inelutavelmente volvemos nas horas em que o nosso espírito se recolhe para meditar.
Estamos aqui debruçados sobre o passado da nossa Faculdade, e como impedir que o nosso espírito todo se absorva em perscrutar o seu futuro?
É certo que encontramos nas tradições, mesmo tênues, da nossa casa, um elo poderoso que nos prende, e nutre a nossa convivência intelectual. Uma hora como esta dá lugar a meditações graves, mas também sugere a evocação comovida daqueles que deixaram impresso o seu vulto na memória dos seus discípulos de ontem, colegas de hoje, e retirando-se pela morte, pelo apelo de outros postos, ou pela idade, a eles legaram o encargo de manter as cátedras que ilustraram.
Quero render-lhes a homenagem que no dia de hoje transborda dos nossos peitos; seus grandes nomes são as nossas glórias, seus pensamentos e livros são os episódios culminantes da nossa história externa, os gestos e palavras que deles nos ficaram são a crônica doméstica.