San Tiago Dantas

INSTITUTO RIO BRANCO
POLÍTICA EXTERIOR E DESENVOLVIMENTO
Discurso de paraninfo pronunciado em 10 de dezembro de 1963 por SAN TIAGO DANTAS


Recebi desvanecido a honra de paraninfar, nesta solenidade, a turma de diplomatas de 1963. Não oculto que além do apreço que tenho pelo Instituto Rio Branco, de onde ela procede, contribui para esse desvanecimento a circunstancia de conhecer a inquietação e o inconformismo dos jovens que a integram, diante dos problemas irresolvidos de sua formação, de sua carreira, e da própria política internacional do nosso País.

É animador pensar que esse inconformismo é a marca de uma geração nova, e representa a última fase de uma transformação de mentalidade, que se vem processando em poucos anos, e superpondo a sua influência aos modos de pensar e agir remanescentes de fases anteriores.

A característica dominante da primeira fase foi uma posição idealista, de afirmação de conceitos sem ligação com a realidade. Essa atitude dominou a cultura, a política e outras formas de liderança social, e no terreno da política exterior o que pôde produzir foi a valorização de certas ficções, sobretudo de natureza jurídica, nem sempre correspondentes aos interesses específicos do País.

Já a fase seguinte foi marcada pelo descrédito daquele idealismo, mas, ao perder-se a confiança nas ficções e nas formas, não se soube substituí-las por critérios racionais e conceitos válidos, derivados de uma apreensão objetiva da realidade. Passou a prevalecer um realismo rudimentar, uma incapacidade persistente de racionalizar soluções, desfechando numa espécie de fatalismo, em que se torna passivo, e muitas vezes desorientador, o papel desempenhado pelo homem publico.

Na política externa, o resultado é a abdicação de responsabilidades e de iniciativas, enquanto a diplomacia se transforma numa atividade assessorial e informativa, e gradualmente se desengaja do seu objetivo primordial, que é induzir, por meios políticos, decisões do interesse do País em áreas de deliberação não dependentes de sua soberania.

O SR. SAN TIAGO DANTAS – Sr. Presidente, não é sem emoção que subo pela última vez os degraus desta tribuna, para apresentar a V.Exa. e aos nossos eminentes companheiros de legislatura as minhas despedidas, ao renunciar ao restante do meu mandato de Deputado Federal, por haver aceito a designação do Exmo. Sr. Presidente da República para representante permanente de nosso País junto à Organização das Nações Unidas.

Esta decisão, Sr. Presidente, tomei-a comigo mesmo, no recesso da minha consciência, depois de medir amadurecidamente os argumentos que pesavam contra e a favor desta atitude. Pesava contra, especialmente, o meu desejo de levar até o seu último dia o mandato com que me honrou o povo de Minas Gerais, e que aqui procurei desempenhar com os olhos postos nos exemplos mais dignificantes da tradição política de Minas, consultando sempre os interesses superiores do País, a índole do regime, e essa particular preocupação de legalidade, que está na base das nossas tradições democráticas (muito bem!) e, que seguramente, representa o ponto mais rico, a inspiração mais fértil da nossa vida pública.

Desejava, também, Sr. Presidente, não afastar-me do Congresso num momento em que a vida política do País apresenta contradições tão graves e vê delinearem-se, a cada passo, problemas que assumem feições de crise. Sabemos bem que essas crises já não poderão abalar os alicerces das nossas instituições, (muito bem!) porque, se há algo que tenhamos conquistado nos últimos anos da nossa história política, é, seguramente, a confirmação da convicção democrática, esse amadurecimento político, que se incorporou à nossa experiência, e que permite tenhamos hoje a certeza de estarem conjurados, de modo permanente, os riscos, que nos saltearam tantas vezes, dos regimes de exceção, e das tentativas de quebra da continuidade da vida democrática, mediante golpes de Estado. (Muito bem! Palmas.)

Inscreve-se hoje o nosso País no número daqueles em que a democracia deitou raízes profundas e em que o estilo democrático de vida tornou-se, para o povo, uma parte de sua razão de ser. Nem os totalitarismos da direita com seu primarismo feroz e com sua violência posta a serviço de interesses particulares, nem o totalitarismo da esquerda, procurando implantar, numa democracia, métodos de ação direta, que na verdade dão ensejo a ditaduras aparentemente temporárias, mas, na verdade, de duração indefinida, nenhum dos dois logrará mais vencer, na pujante comunidade política que formamos, esta vocação democrática…

O Sr. Mário Gomes – Que Deus o ouça.

 

Discurso proferido a 30 de agosto de 1940 ao tomar posse da cadeira de Direito Civil da Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil. 

Eu faltaria com a verdade para comigo mesmo e para convosco, se vos dissesse que esta grande hora é, para mim, uma hora de contentamento. Os caminhos do coração são difíceis. Os sentimentos formam, não raro, dentro de nós, combinações que não deciframos.
A alegria é que me invade, certamente, quando me ponho a considerar a desmedida recompensa que esta cátedra representa para os estudos a que dediquei a juventude. Com alegria, revejo neste instante os anos ainda próximos da minha vida acadêmica, quando se me impôs, como uma sugestão irresistível, o ideal do magistério jurídico. Revejo muitas cenas desses tempos de estudante, rememoro o formar-se das esperanças e das ambições, sinto de novo ao meu lado o apoio dos que me encorajaram, e vendo chegar tão cedo a recompensa extrema a que aspirara, não posso dominar o júbilo que me enche o peito, e meu pensamento parte ao encontro de meu pai, que a esta hora, no seu veleiro, está singrando o oceano.
Se, porém, me concentro sobre o sentido desta cerimônia, uma ideia grave não tarda a vir mudar o rumo destas emoções. Sinto que ao ocupar tão cedo esta cátedra, não estou apenas vencendo uma etapa da minha carreira, mas estou escolhendo e assumindo o meu destino. Ora, o encontro do homem com o destino não se dá sem amargura. Pouco importa saber que combatemos para o alcançar. O que pesa em nós é um sentimento indefinido e irresistível; talvez nesta nossa condição humana, plasmada na hesitação e na dúvida, é o sentimento que nos deixa a renúncia à disponibilidade em que um momento antes nos achávamos. O que experimento agora, meus senhores, — e vós escusareis que antes de vos dizer os meus propósitos, eu vos comunique as minhas emoções — é precisamente esse sentimento de que terminou a disponibilidade dos primeiros anos, e de que o destino se enunciou diante de mim como uma lei, definindo a posição e o rumo dos meus trabalhos futuros. Professor é o que serei; a existência do professor será a minha existência; meus ideais, meus trabalhos, minha vida pública, quero que se contenham no professorado, e, se possível, que dele irradiem.
E é aí que um terceiro sentimento vem combinar-se ao júbilo e à secreta amargura que esta solenidade encerra para mim. O entusiasmo, não o que transparece numa exaltação externa, mas o que faz ferver nas veias as nossas energias mais profundas, enche-me o peito de estímulo para trabalhar ao vosso lado e partilhar a tarefa que vos impusestes, de estudar e ensinar o Direito.
Essa tarefa assume nos dias de hoje um sentido e um alcance que em raras oportunidades históricas tem tido: vivemos em quase todos os países sob o sentimento da inutilidade do Direito. As lutas sociais, as grandes revoluções que inclinaram aos seus ideais políticos os sistemas de Direito Positivo, as guerras que fizeram tábua rasa dos princípios e formas do Direito Internacional, reacendem no espírito público a opinião de que a norma jurídica é de uma fragilidade que a torna inútil e de uma versatilidade que, a bem dizer, a identifica com o arbítrio do soberano. 

Discurso proferido a 16 de março de 1942 na abertura dos cursos da Escola de Educação Física.

Reabrem-se, pela quarta vez, os cursos superiores de educação física da nossa Universidade; a ocasião é própria para examinarmos, já com a experiência deste novel ramo do ensino, o valor e o sentido da cultura física na Universidade e, portanto, na civilização brasileira.

O que representa para nós a cultura física? Que sentido lhe devemos imprimir em nossa Escola, para sintonizarmos essa força no quadro da educação brasileira?

Tem sido a cultura física um dos temas prediletos da moderna ciência da educação, e talvez do mundo de hoje. Empreendeu-se a princípio uma grande campanha para escoimar o espírito público e mesmo a mentalidade técnica, dos velhos preconceitos contra a cultura do corpo, de que estiveram imbuídos os nossos antigos; preconceitos dos quais, talvez o maior fosse apenas o descaso ou a indiferença. Criou-se, depois- pela inelutável lei que conduz as teses polêmicas a excederem o limite da legitimidade de suas reivindicações – a mística da educação física, e fez-se da higidez do corpo, da saúde perfeita, a base da própria perfeição moral, como do vício se quis fazer um epifenômeno da doença.

A famosa legenda mens sana in corpore sano, que só é admissível como expressão de um ideal, a que deve tender cada indivíduo, foi tomada no sentido falso e insustentável de uma relação de causa e efeito, em que a saúde do corpo fosse a condição necessária – senão a condição suficiente – da perfeita saúde da alma.

Tende-se hoje, afinal, para um ponto de equilíbrio; da excelência, da necessidade, do alcance da cultura física, não há mais quem duvide; na possibilidade de se tornar ela caminho da educação moral, já não há quem creia. O homem tanto se corrompe moralmente sob a influência de condições físicas contrárias, como se corrompe pela ação de fatores que apenas à vida moral pertencem, e que irredutivelmente se subtraem aos efeitos benéficos, tanto da educação física, como da educação intelectual. De sorte que a educação do homem envolve sempre uma ação total sobre a sua personalidade: exige o atletismo e o estudo, o conselho e o exemplo; e impõe desde a adequação do seu corpo ao meio em que ele vive, até a preparação da sua alma para a plenitude da vida espiritual.

Outra razão que contribui para o prestígio da cultura física no mundo de hoje é o exemplo que dela nos fornece aquela antiguidade grega e romana, a cujo modelo sem cessar nos reportamos. Já alguém notou que constitui singular raridade a devoção de uma cultura a outra, como esta que se observa, desde o Renascimento, entre a cultura ocidental e a clássica. Esse obséquio que nos faz buscar nos gregos e romanos lição para cada um dos nossos problemas não consegue, porém, vencer as irredutíveis divergências da cultura antiga e da moderna, ali estão com sentidos diversos que lhes transmudam a significação.