Discurso proferido quando deputado, por ocasião de seu falecimento*
* Discurso publicado nos perfis parlamentares da Câmara dos Deputados.
Sessão de 19 de novembro de 1959
O Sr. SAN TIAGO DANTAS- Sr. Presidente, peço a palavra para uma urgente comunicação.
O SR. PRESIDENTE- Tem a palavra o nobre Deputado.
O SR. SAN TIAGO DANTAS (Para uma comunicação)- Sr. Presidente, pedi a palavra apenas para encaminhar à Mesa pequeno discurso associando meu partido à homenagem ontem prestada, no Pequeno Expediente, ao Ministro Alfredo Valadão, ex-Professor da Faculdade Nacional de Direito e membro do Tribunal de Contas ontem desaparecido. (Muito bem.)
O Sr. San Thiago Dantas envia à Mesa para ser publicado como se fosse lido, o seguinte discurso:
“Sr. Presidente, venho à tribuna para render as homenagens do meu partido, especialmente dos Deputados trabalhistas que integram a representação de Minas Gerais, a uma grande figura de jurisconsulto, historiador e homem público, que acaba de encerrar, aos 86 anos de idade, a sua digna e laboriosa existência: o Professor Alfredo de Vilhena Valadão.
Nascido na tradicional cidade de Campanha, Minas Gerais, em 11 de setembro de 1873, Alfredo Valadão viveu na sua província até 1891, formando seu espírito nos cursos de Humanidades daquela cidade e de Ouro Preto, para depois bacharelar-se em Direito na Faculdade de Direito de São Paulo, em 1894.
A primeira fase de sua carreira transcorreu em Belo Horizonte, a princípio à frente de sua banca de advogado e mais tarde como professor da Faculdade de Direito, dirigida pelo primeiro Afonso Pena, que o convidou para professor substituto da seção de Direito Público e Constitucional, tendo exercido, interinamente, a cátedra de que era titular o ilustre David Campista.
Datam desse período os primeiro estudos que o consagraram como jurista, notadamente o excelente ensaio sobre a unificação do Direito Privado, ensejado pelos trabalhos de elaboração do Código Civil e que marcaria uma de suas preocupações constantes, a que voltou em estudos posteriores; o trabalho Rios públicos e particulares, de 1904, com o qual iniciou a sua especialização no Direito das Águas, firmando algumas teses, que desenvolveria posteriormente e que dele fizeram, em 1933, o relator do projeto de lei, afinal convertido, com poucas alterações, no Código das Águas, decretado a 10 de julho de 1934.
Já nesses estudos Alfredo Valadão evidenciava o que seria uma das marcas principais, se não a nota dominante, de sua vocação intelectual: o pendor monográfico, a capacidade de aprofundar problemas, tomando num estudo preliminar uma ideia ou um tema e a ele voltando reiteradas vezes até atingir o seu tratamento completo, incorporando-o, em termos definitivos, à literatura científica. Para isso contribuía a capacidade de concentração e de pesquisa do seu espírito, a honestidade implacável com que perseguia a documentação e revolvia os fundamentos de qualquer assunto, redigindo suas conclusões com a segurança e a cautela de conferirem à obra terminada autoridade e durabilidade.
Discurso proferido quando deputado, na comemoração de seu centenário*
* publicado nos perfis parlamentares da Câmara dos Deputados.
Sessão de 5 de outubro de 1959
O SR. SAN TIAGO DANTAS-
Sr. Presidente, tenho a honra de associar às comemorações do centenário de Clóvis Bevilacqua o Partido Trabalhista Brasileiro e o Partido Republicano.
Poucas homenagens podem justificar-se, nesta Casa, como a que hoje prestamos ao autor do projeto de Código Civil. Não só porque foi Clóvis Bevilacqua um dos maiores expoentes da cultura brasileira, especialmente da cultura jurídica, como porque, no recinto da Câmara dos Deputados e nos trabalhos da Comissão encarregada de estudar o projeto de Código, é que sua vida de jurisconsulto e estudioso atingiu a culminância.
Clóvis Bevilacqua foi uma das grandes expressões da cultura jurídica do seu tempo. Mas, como todo homem cuja vida parece inscrita num desenho do destino, foi através de um episódio de um momento supremo, que sua existência adquiriu um sentido duradouro e se tornou um exemplo para os contemporâneos.
Dir-se-ia que toda a sua vida de homem e de estudioso foi, até o ano de 1899, uma preparação demorada para aquele episódio que ia viver. Em seguida, os anos do Código Civil não foram simplesmente de estudo ou de controvérsia; foram anos de luta, de polêmica em que ele consagrou todas as forças da sua personalidade à realização de uma grande obra, incorporando, à vida brasileira, uma lei que é hoje considerada, com razão, o maior dos nossos monumentos legislativos. E daí por diante, depois de ter dado o fruto supremo do seu engenho, a sua vida se desenrolou, ainda por trinta e tantos anos, pontificando no Foro ou como consultor do Governo, com autoridade de oráculo.
Quando nos debruçamos sobre essa vida exemplar, quando lhe percorremos os episódios mais significativos, parece-nos claro que ela se desenvolve em três fases distintas.
A primeira fase começa com a chegada ao Recife para iniciar os estudos jurídicos, e termina em 1899, quando ele se transfere para o Rio de Janeiro, a fim de atender ao convite do Governo de Campos Salles, que lhe fora dirigido pelo Ministro da Justiça, Epitácio Pessoa.
A segunda fase é a culminante, de realização da sua obra mestra. Durante anos sucessivos, na Câmara dos Deputados ou através da imprensa, ou através de livros, o autor do projeto teve de defendê-lo, e não o defendeu apenas movido por amor próprio científico, para preservar o produto do seu próprio engenho, mas como alguém que se considerava portador de um espírito de renovação e de reforma, e que lutou para imprimir os sinais de uma mentalidade nova em nossa antiquada legislação civil.
Ergo-me emocionado, Sr. Professor Francisco Campos, para tributar a V. Ex.a as homenagens da Comissão Jurídica Interamericana, onde tive a honra imerecida de substituí-lo como delegado do Brasil.
Julgou-se V. Ex.a, por motivos em que não nos é facultado penetrar, que devia deixar o posto, a que dedicara doze anos de sua incomparável atividade intelectual. Quer a Comissão exprimir a V. Ex.a o seu pesar por esse afastamento voluntário, que vem privá-la da colaboração de um dos mais ilustres jurisconsultos americanos, e o seu reconhecimento pelos serviços que lhe deve, como delegado e como presidente.
Coube a V. Ex.a substituir, numa e noutra qualidade, um dos nossos maiores homens públicos. A figura de Afrânio de Melo Franco, nimbada de uma legenda de idealismo pacifista, que lhe deu, mais do que a qualquer outro homem de Estado brasileiro depois de Rio Branco, projeção continental, estava indissoluvelmente ligada à Comissão Jurídica, desde quando a presidira, com as funções e a denominação de Comissão Interamericana de Neutralidade.
Para substituí-lo foi o governo brasileiro buscar, na pessoa de V. Ex.a, um jurista que dominava e abrangia todos os ramos do direito, mas que até então não se projetara, por exceção talvez, única, no campo específico do direito internacional.
Chegava V. Ex.a naqueles anos, ao mesmo tempo, ao apogeu da sua carreira política e à plenitude da sua inteligência. Sua presença na vida intelectual brasileira começara a se fazer sentir desde os bancos acadêmicos, de quando datam as páginas lúcidas e amadurecidas do seu discurso Democracia e Unidade Nacional, e se afirmara, pouco depois, num concurso famoso, que lhe deu ingresso à Faculdade de Belo Horizonte, como professor de Filosofia do Direito, com duas teses de cerrada erudição e ardente originalidade.
Quando, em 1871, Lúcio de Mendonça transpunha as arcadas do Largo de São Francisco, para dar início ao seu curso jurídico, começava para a sociedade brasileira uma década decisiva, em que se preparariam fundamentais transformações. O adolescente nascido em 1854, no apogeu do Império, iria formar o seu espírito e fixar os objetivos permanentes, para os quais orientou sua alma e sua existência, na fase em que as instituições monárquicas, velozmente envelhecidas, recebiam o choque de ideologia contrária e começavam a sofrer com a decomposição incipiente do quadro social e econômico em que assentavam.
O ambiente intelectual da Faculdade era literário e romântico.
As letras jurídicas eram largamente suplantadas pelas belas-letras, e os grandes nomes de que se ufanava a tradição acadêmica não eram de juristas, mas de poetas. Poetas românticos, que foram porventura os maiores da nossa terra, se quisermos medir a grandeza dos poetas pela extensão e profundidade com que penetram, modelam e definem o gosto literário – erudito e popular.
As vozes de Castro Alves e Álvares de Azevedo eram contemporâneas. O poeta romântico ligava a paixão amorosa e a paixão cívica, e se de um lado falava ao que há de recôndito e incomunicável no indivíduo, de outro lado exprimia os grandes anseios, que agitavam, a menos de um século de distância, a alma liberta das multidões.
No ambiente romântico daquele tempo, o poeta não era socialmente o ser à parte que voltou a ser hoje; era, antes, um líder social.
A vocação poética – longe de exprimir uma atitude de abstenção e de alheamento aos problemas do tempo – era uma vocação essencialmente ativa, um sinal de liderança e um anseio de participação.
Lúcio de Mendonça trazia talvez do berço a predisposição para essa adolescência típica do homem da elite de sua época.
Seu coração sensível, dotado de meiguice, de delicadeza e comunicativa emoção, já o inclinara, desde a meninice, a uma poesia elegíaca, sem veemência e sem arroubos, na qual se refletiu até o fim da existência o equilíbrio de sua natureza difícil e delicada.
Saudação a Narcélio de Queiroz
Tenho a honra de dirigir a V. Exa a saudação dos advogados que militam no foro da Capital da República.
A solenidade, que hoje nos reúne em torno da sua pessoa, periodicamente congrega a classe forense em preito de confiança e de homenagem a um novo juiz de conselho. A sua reiteração, contudo, não lhe diminui, nem uniformiza o significado.
Cada juiz novo, de que se enriquece o Tribunal, é um homem diferente, e o que a sua personalidade contém, e projeta na vida judiciária do país, tem um sentido próprio, um valor único e irrepetido.
Tal é o privilégio da personalidade. Ela vivifica as funções em que se investe, e, ao mesmo tempo que recebe destas uma graça de estado, a elas transmite os infungíveis atributos da sua natureza.
Eis porque a criação de um novo desembargador, ou de um novo ministro, afeta a seu modo o próprio destino do poder judiciário.
Há personalidades, muitas vezes ricas de atributos, que entram em choque com a investidura, e há outras feitas para ela, que nela aplicam, e através dela multiplicam todas as suas qualidades, alimentando com sua contribuição individual a vida da instituição a que se incorporam.
É essa equação entre o homem e o cargo, entre a personalidade individual e a função pública, que dá a solenidades como a de hoje um sentido sempre novo. Por isso é natural que os nossos espíritos se voltem para a personalidade do oblato, e nela procurem descobrir e assinalar os traços peculiares, que ele pode imprimir ou acentuar no colégio em que ingressa. Quebra-se, assim, por um momento, o recato que nos impede de expor à luz crua da opinião a figura intelectual e moral de um magistrado. Com a franqueza confidencial, que é o privilégio das grandes ocasiões, podemos falar, não dos seus atos, mas dele próprio, não de suas opiniões vazadas em sentenças, mas das próprias peculiaridades de sua formação intelectual.
Vem V. Exa, Sr. Desembargador, da magistratura de primeira instância, cujas varas de competência geral ou especializada percorreu, trazendo para o seio deste tribunal a mais preciosa das reputações, que podem ornar uma carreira de magistrado: a reputação de uma excepcional integridade.