San Tiago Dantas

Obra >> Correspondência >> Joao Jose Barbosa Quental >> 10 de Janeiro de 1930

Rio, 10.1.30

Querido John

Até agora a única maneira por que falei a você, nesse ermo, foi a remessa da “Ordem”, que você recebeu. Isso pareceria que eu tivesse querido, antes de um só abraço, de uma só noticia, dirigir ao médico -, uma palavra moral. E, zeloso dos domínios da minha ciência, não querendo que o risco passasse, sequer, da arte leiga violentar a imarcessibilidade de um Princípio,  viesse logo arrancar das mãos do novel parteiro, a infâmia do cranioclasta. Mas foi só a casualidade, caro John, que deu aos fatos essa pitoresca distribuição, e deles não podemos tirar outra interpretação legitima, que não seja esta: – que se a preguiça, o trabalho, etc., me fizeram não escrever, não conseguiram de nenhum modo me fazer esquecer. E de fato você tem feito uma falta enorme. E só essa grande e ponderável cousa que é o mealheiro, pode explicar a sua ausência e o seu desterro. Cordeiro deve ser infame sob todos os aspectos, salvo o de que é a terra do modesto velocino, tão proporcional ao nosso burguês idealismo, de algumas dezenas de contos de reis. Mas esse velocino, nem ao menos se obtém domando touros de pulmões de fogo, e furtando unguentos a Medéa. Ganha-se aos poucos, combatendo inimigos pequenos e difíceis como marimbondos, mas que devem dar uma sensação feliz de purgatório, de caminho. Só a luta dá valor e realce às vitórias. E por isso você será feliz quando tiver lutado, e vencido. Poderá saber quanto tem, porque sabe quanto pagou. Deverá a si mesmo, que é o único credor que não escraviza.

Mas se tudo isso é bom de pensar no Paraiso, ainda é horrível no Purgatório. Dante, – de quem nada estava indicando que fossemos tratar, – deu ao Purgatório a noção precisa. Não há nem o absoluto, o eterno, do Inferno e do Paraiso. Nestes a grandeza da Dor, e a da Graça, vivem de sua perenidade, do seu sentido final, terrível ou glorioso. Mas no Purgatório nada é grande, porque tudo é transitório, o relativo reduz e humaniza, mesmo o sobrenatural. Têm esse mesmo sentido falho, efêmero, as fases da vida, como a que você está vivendo. Não há motivo nenhum para que as engrandeçamos, nada nos leva a desejar crescer dentro delas. Daí a repetição, a monotonia. Mas daí também o heroísmo. Porque só o idealismo, o desejo da fase futura que se prepara, pode valorizar esta aos nossos olhos. E é por esse idealismo, nós venceremos esta fase, mesmo quando Ela fique mais dura, menos esperançosa e mais agreste. Os idealistas são herois. Que você ao menos agradeça a Deus, ter lhe permitido a graça de passar por uma escola de heroísmo. E que você se forme, são os meus votos.

Aqui no Rio, há recompensas mais fáceis aos nossos esforços. E por isso o aperfeiçoamento é mais lento, e mais difícil. Os homens, – como as sociedades, – purificam-se no ascetismo (v. Idade Média). E nós aqui estamos longe desse espírito de sacrifício, (de que você está perto), e nos achamos cercados, dominados, empolgados, pelo espírito de vida, que tudo naturaliza, e leva.

E é justamente das manifestações desse espírito, ruidosas e felizes, que eu vou agora fazer agora a você um relato, certo aliás de que o estou tentando, no seu ermitério, como uma voz pérfida do Demônio. Mas se não fosse o Demônio, onde estariam os Santos? São as batalhas que fazem as vitórias, e estas são maiores contra maiores inimigos.

Saiba assim, que nesta cidade, a vida intelectual foi agitada pelo curso de sociologia que realizou o sr. Tristão de Athayde. É que sobre esse curso, – que sairá breve em livro, e lhe será mandado, – até eu escrevi um artigo, que breve aparecerá. Além desse notável evento, (o curso), o sr. Gilberto Amado retomou sensacionalmente a sua posição de intelectual e jornalista, inaugurando uma crônica semanal, às 4ªs feiras, no “O Jornal”, que tem sido admiradíssima. Estudos curtos, vivos, coloridos, num estilo admirável de nervosidade e de luz, e com uma informação copiosa e moderníssima. Em todo caso, artigos pouco doutrinários, isto é, sem nenhum fim doutrinário, onde o autor conclui pouco, e geralmente nada aconselha ou manda. Mas onde está uma análise penetrante de cada problema que estuda, e sobretudo onde se sente um nível, que o jornalismo brasileiro não conhece, e nem merece. Março, o sr. Octavio de Faria nos dará, em livro, um ensaio sobre Machiavel. Agora deu-nos o “Tau”, com estudos notáveis, e que aí chegará breve. De mim, posso dizer neste capítulo, que apenas estudo, – Machiavel, o fascismo, o comunismo, – e que espero fazer até fevereiro, um longo ensaio, cem ou cento e poucas páginas, sobre o corporativismo fascista e cristão. Ensaio que publicarei na “Ordem”, em três ou quatro números, e que por sinal agora serão mensais. No mais, o curso de Filosofia, que me ocupa um pouco. E a Polícia, hélas!

Quanto à vida moral, posso dizer que, do ponto de vista coletivo, vamos mal. Um certo Luzardo, – de quem você aí terá talvez ouvido falar, – proíbe agora nas praias, a ausência de roupão, salvo dentro d’água, (medida andrógina), o “maillot” menos de três palmos abaixo da cintura (!!), e, o que é preocupante, o calção, o calção masculino acima do joelho! Tudo é justo contra um governo policial, que pensa que moralisa por proibir o que é uma manifestação sem malicia de um estado de espírito contemporâneo, – certo ou errado, mas não corrigível policialmente, – e que por certo ignora que na Idade Média cristã, na ingenuidade ainda fresca dos primeiros séculos, tomava-se banho em Bâles, numa promiscuidade moral de homens e mulheres, nus.

Pior ainda é talvez a vida política, onde não vemos mais aquele severo personagem, de preto e colarinho mole, que mesmo nas ausências mais prolongadas da Inteligência, nunca deixará de exercer o seu posto, em interinidade. Esse cavalheiro, o Senso Comum, existe agora só nos barbeiros e nas farmácias, seus solares de família há muitas gerações. E não se sabe se ainda ocupará o Governo, onde tudo faz crer que será, dentro de dias, substituído pela Hilaridade.

Mas se tudo vai tão mal nesses caminhos, em nenhuma esfera nos vemos em tão triste estado, como na vida física. Aí domina o calor, um calor tirânico, um calor que derrota, que dissolve, que funde. E que só à noite, e aqui, em Ipanema, nos abandona para dormir um sono curto de feitor fatigado. De manhã volta, com látego e ordens. Mas há ainda o chuveiro, que sob o despotismo, é o ultimo refugio do liberalismo nacional.

E ainda caberia um reparo sobre a vida sentimental, se esta não fosse a mesma, em qualquer lugar e ocasião. Mas se a curva da amorosidade oscila, será por causa da temperatura tão somente. Que esta conspira contra a família e contra a igreja. E não contente de encher as praias sob o sol, ainda as povoa maliciosamente sob as estrelas. As sereias saem do mar, do ventre numeroso das ondas. As dríadas e amadríadas entram nos bosques fecundos e rumorosos. Há também lirismos, por certo. E entra com a maior corporação de faunos, – o glorioso exercito nacional.

Mas há dias os jornais noticiaram que esteve no Mangue, o Sr. Baptista Luzardo. Essa visita prendeu-se a fins exclusivamente policiais.

Está muito grande esta carta, e eu nem pude falar da fazenda, nem mesmo do futuroso escritório que acabamos de abrir, no edifício Gloria, 3º and., sala 12 (excusez du peu).

Isso tudo ficará para depois, que esta página vai apenas com o grande abraço que aqui manda ao jovem e já conceituado pediatra, “doublé” de um consciencioso parteiro, o

Francisco