BHte, 8.2.35
Querido João
Escrevo-lhe na noite memorável em que se conversou de telefone daqui para o Rio, como se estivéssemos na mesma cidade. Os sustos só agora se acabaram. E como tenho a cabeça meio revolucionada, vou começando esta carta antes de me sentir com ânimo de estudar. Creio que vou para aí nesses dois ou três dias, de modo que não há mais notícias oportunas e interessantes. Fica tudo para a conversa. E isso mesmo será pouco, porque a nossa vida aqui não tem sido abundante nem muito alegre. Edméa tem a alegria das primas, que são mesmo moças divertidas, vivas e agradáveis. Mas eu, preocupado com esses estudos crônicos e com esse abatimento da Dindinha, não consigo a liberdade de espírito que seria precisa para fazer a vida em BHte. Saio pouquíssimo, estou atrasado nas visitas de obrigação, e agora é que começo a ficar mais tranquilo para organizar melhor a vida de estudo.
Depois, não tem faltado amolações e preocupações sérias. As primeira tem vindo da casa e da cidade, quase todas. As segundas, ou do estado de Dindinha, ou agora do próprio Aureliano, que piorou em S. Paulo do esgotamento nervoso, a ponto de se sentir impossibilitado de viajar só, e de pedir que um irmão o fosse buscar. Deve chegar por esses dias, não sei em que estado, e talvez volte para o Rio logo, com D. Naná. Talvez se resolva a fazer algum tratamento por aqui mesmo. E tudo isso a nossa casa sendo pequena para uma estadia maior dele, uma vez que na realidade não temos senão dois quartos.
Creio que irei para aí depois da vinda dele, não só para ficar mais esclarecido sobre o que se passa, como por tranquilidade. Desde amanhã, porém, ele pode chegar qualquer dia. De modo que o cálculo mais certo é o de minha ida entre 10 e 14.
Hoje, dia de aniversário do casamento de vocês, um dos motivos principais desta carta é dar nossos parabéns. Telefonamos na hora do jantar, mas ainda quero mandar por aqui, os nossos desejos de uma longa e sólida vida comum. Não (me) sinto há muito tempo feito para conselhos. Entretanto, quando eu era mais moço tinha uma queda decidida e inelutável para o gênero. Hoje fico mais hesitante, mais convencional. Não porque me sinta sem autoridade, pelo contrário: sou um dos homens mais experientes que tem havido. Mas já não creio que aconselhar seja um ato útil e oportuno. Quase sempre é um monólogo, em que a figura importante deixa de ser o destinatário e passa a ser o emissor.
Depois, vocês não precisam de conselhos urgentes, e estes são os únicos possíveis. Seus defeitos você pouco a pouco os vai conhecendo; ora, conhecer um defeito, é começar a perdê-lo. E se é certo que ninguém perde inteiramente os seus, porque alguns são institucionais, estruturais do seu portador, é bem certo também que a perfeição não é um estado que se possa cristãmente pensar em alcançar.
Uma coisa é o esforço e outra é a esperança. Deve-se fazer pela perfeição um grande esforço, mas não se deve ter dela esperança. O fruto do esforço é o arrependimento das imperfeições e o bom propósito. Mas nem mesmo aos grandes santos se permitiu colher mais subidos resultados.
Em vão se diria que não há esforço sem esperança. Isso seria esquecer a maior grandeza da condição humana, que é entrever o ideal fora e acima da sua medida, e dar-se, gratuitamente, à busca do inencontrável. O que é verdade ao mesmo tempo para a graça, para a perfeição moral e para a plenitude do conhecimento.
De modo que é ridículo desejar para alguém a remissão dos seus defeitos. O que se deve desejar é a consciência e o propósito. Esses limites não só encerram a esperança possível, como espelham a gratuidade e portanto a nobreza do esforço humano.
Também não desejarei a vocês que sejam felizes, porque a felicidade é um ideal pagão, impróprio do homem. A felicidade, isto é, o destino propício à nossa profunda alegria, – é um acaso. A vida do homem cristão não depende de nenhum acaso. Para todas as formas de destino, das grandes desgraças às mediocridades mais humildes e às glorias maiores, há uma vida que nós devemos chamar de justa, dando a essa palavra todo o seu sentido. O dever e a esperança do homem devem ser postos na vida justa. Deus dá uma oportunidade a cada um. Oferece a este a desgraça, para ver se ele se desespera, oferece àquele o vazio e a mediocridade para ver se ele se vulgariza, oferece a outro a felicidade para ver se ele se embriaga. Poucos se salvarão pela aceitação convicta da aventura que o destino lhes ofereceu; poucos dominarão as tentações específicas do seu estado, pelo heroísmo diante da desgraça, pela elevação interior diante da vulgaridade, e pela temperança diante das alegrias.
Porque desejar a felicidade? Acaso a temperança é mais fácil que o heroísmo? Todo destino é indiferente para quem põe o seu ideal na vida justa. A felicidade é para quem põe o seu na vida agradável.
Tenho pois direito e obrigação, de não desejar para vocês este ou aquele destino. Na sua casa sou padrinho em duas gerações, o que é uma situação de relevo indiscutível. Posso, pois, fazer com grande significação os meus solenes votos para que nem a você, nem a Dulce, nem ao Raul, a vida possa jamais aparecer ligada a qualquer consideração de felicidade. O destino para as grandes almas é sempre uma grande aventura, quer ele nos chame ao drama da praça pública, ao drama das contas dos fornecedores ou ao drama da riqueza e da voluptuosidade no meio da miséria do mundo.
E até se para o Raul eu tivesse de formular um voto profundo, seria o de que ele tivesse mérito intelectual e moral para suportar uma vida de que Deus banisse tudo que tenta, tudo que confunde o espírito com o prazer do mundo, uma vida de duras rajadas que o tornassem um forte os olhos da Eternidade.
Mas tudo isso são coisas que se eu digo, é porque vocês já sentem. Não se diz um tamanho impropério sob céus mais helênicos. É em todo caso o que lhes posso dizer nesse dia, com esta minha amizade a todos três, que não posso comparar senão ao tempo, tão certa é ela, tão regular e tão eterna. Um grande abraço da Ed, e outro meu.
Francisco