Querido Felipe
Nova carta sua nos trouxe muito contentamento, do mesmo modo que a da Maria Helena. Nesta viagem, feita com muito pouca saúde, e pela primeira vez longe do apoio dos médicos, é inevitável que nos sintamos muito sós, e as cartas sobem de valor, valem como uma companhia. Edméa tem sido admirável de paciência, dedicação e compreensão. Nunca imaginei, apesar de conhecê-la tão bem e há tantos anos, que ela chegasse a assegurar-me, como tem feito, tudo de que, numa hora difícil como esta, eu iria precisar.
Nancy foi uma experiência dura. Em outras condições, em início de doença, teria sido até de efeitos positivos, dadas as boas conclusões dos médicos. Mas depois de tantos exames e abalos, o fato de recomeçar, de repetir, acabou por nos colocar os nervos em grande comoção.
Aqui em Viena, ainda estamos sob o choque, embora as companhias do Gibson e da mulher nos distraiam e alegrem.
Tenho apreciado muito Viena, com a sua grandeza de cidade-chefe, a enormidade dos palácios, as vastas perspectivas, e no meio disso tudo um povo que parece pobre para a Europa de hoje, com poucas aberturas para o futuro, deprimido pelos seus padecimentos de guerra, e muito sem força, sem força criadora. Nunca supus que se sentisse tanto o caráter de encontro de culturas, em que invariavelmente se insiste ao falar da Áustria. Nas ruas, há momentos em que se pensa em Paris, outros em que se sente a Itália, Roma sobretudo, e unindo tudo o fundo germânico. Tudo isso, porém, está mais na arquitetura, nos edifícios, do que na nação viva dos nossos dias.
O Kunstmuseum tem coleções magníficas. Vi com enorme satisfação os Brueghel, toda uma sala, em que estão quadros como a Bauernstanz, a festa das bodas, cenas de inverno, os jogos infantis. É extraordinária a força popular, não só dos temas, mas da pintura, isenta de qualquer requinte, sem luz e sombras, com cores puras, opostas sem transições, e um realismo sem nenhum propósito crítico. Também de Dürer há coisas ótimas, entre elas a magnífica virgem com o menino, uma Gretchen de absoluta pureza, tratada com uma precisão de desenho e uma delicadeza de cores, que a meu ver a colocam com vantagem no cotejo com os melhores Rafaéis. Há vários Cranachs excelentes, e uns oito Velasquez tão bons como os melhores do Prado.
Visitamos também a Albertina. Não há exposição, funciona como uma biblioteca. Pedimos as pastas de Michelangelo e Leonardo, que nos foram trazidas no gabinete de leitura, contendo os originais de desenhos a tinta, sanguínea e lápis. Para um estudo em profundidade, é alguma coisa de grande significação.
Também importante a visita ao tesouro do Império, remontando ao Sagrado Império Romano Alemão. Coroas, cetros, bastões, armas, uniformes, mantos reais e de ordens de cavalaria, num conjunto que não me lembro de ter visto em lugar nenhum. O que mais me impressiona é pensar no conceito de si mesmo, que o homem medieval tinha de ter, para se cobrir de tais roupas e objetos, que não seriam outros se fossem feitos para deuses.
Segunda feira seguiremos para a Itália, e a 21 ou 22 chegaremos a Paris para ocupar o apartamento de 2 quartos e 1 sala que o De Vicenzi nos vai emprestar. Estamos muito animados com essa experiência de moradia, que imagino mais trabalhosa, mas cheia de lados agradáveis. Vou, então, continuar a ginástica.
Estou satisfeito que vocês sejam os padrinhos da Lucia e do Zé Roberto. Entendam isso como significando que passam a ser mais que irmãos, e que têm de velar por eles. Confio muito no Zé Roberto. Embora não o conheça muito, pressinto nele um homem simples, inteligente e muito bom.
A notícia que nos chegou da cassação do Juscelino não me surpreendeu, creio que está na linha de concretização do movimento de abril. É claro que acentua a violência, que desacredita ainda mais o país, e não me surpreendo que outras decisões semelhantes venham ainda a sair. Quando vejo agora, num voto do Conselho de Segurança das N.U., envolvendo a condenação da política de discriminação racial da África do Sul, o Brasil abster-se para acompanhar os EUA, a Inglaterra e a França, sinto que a consciência do país está sob formas diversas de coação. Ora, é melhor que estejamos coagidos do que mudados. Nada impedirá que um país, onde o povo está à frente de sua classe dirigente, retome, mais cedo ou mais tarde, o rumo da revolução democrática. Releia, quando puder, as minhas “Ideias e Rumos”.
Já escrevi a seus pais, ao Raul e à meninas. Contamos, em Paris, com novas cartas e daqui mandamos, a você, Maria Helena e crianças, todo o nosso carinho.
Papio