San Tiago Dantas

Hotel Continental, Paris, 25 de junho de 1964

Querido Felipe,

Chegando em Roma dia 23, encontramos sua carta e a de Maria Helena, que nos deram o maior prazer. Terá você recebido duas minhas, e Edméa, por sua vez, respondeu a todas de Maria Helena. Esperamos que a Dulcinha esteja boa de todo, e que os avós de Maria Helena se tenham recuperado, apesar da idade, das crises que estão atravessando.

Nossa ida à Itália foi demasiado rápida, mas serviu como sempre para nos reabastecer, por algum tempo, das imagens italianas. O Hotel Rafael tinha a qualidade de ser um pequeno e confortável hotel de hoje, na carcaça de uma velha casa, a dois passos da Piazza Navona, e situado num pequeno largo triangular, dos mais encantadores. Não circulamos muito. A doença me tem limitado os movimentos, mas como estou visitando lugares conhecidos, uma concentração em poucas coisas não se mostra inconveniente. Em Roma revi com especial cuidado o Cavalini de Sta. Cecilia in Trastevere, que ainda achei mais belo e mais importante que das outras vezes. Também os dois grandes Berninis, o Museu Etrusco, uma exposição de arte Hitita, e muita pintura moderna nas galerias dos marchands. Como passeio, o melhor foi a Appia Antica de ponta a ponta, e um jantar em Frascatti. Encontramos Paris, neste fim de junho, com menos de 20°, coberta de bandeiras em homenagem à visita do rei da Cambodgia. Já recomecei a ginástica e hoje revimos os impressionistas do Jeu de Paume, sobretudo os do 1º andar (V.Gogh, Cézanne, Gauguin e Monet).

Jantamos com o Juscelino, que está muito forte de ânimo, mas não foi possível conversar sobre o Brasil. Amanhã ele ficou de passar por aqui depois do almoço para fazermos uma análise.

Já marquei nossa volta na Panair para o dia 14. Embora haja algumas razões para adiar a volta, não quero deixar de estar aí no dia 18. Edméa pensa do mesmo modo, e assim sendo, a volta está decidida.

Você não me tem dado notícias do Cápua. Voltou ao trabalho? Está refeito?
Mande notícias de todos e receba com M.Helena e as crianças a minha benção e as nossas saudades

Papio

Viena, 13 de junho de 1964

Querido Felipe

Nova carta sua nos trouxe muito contentamento, do mesmo modo que a da Maria Helena. Nesta viagem, feita com muito pouca saúde, e pela primeira vez longe do apoio dos médicos, é inevitável que nos sintamos muito sós, e as cartas sobem de valor, valem como uma companhia. Edméa tem sido admirável de paciência, dedicação e compreensão. Nunca imaginei, apesar de conhecê-la tão bem e há tantos anos, que ela chegasse a assegurar-me, como tem feito, tudo de que, numa hora difícil como esta, eu iria precisar.

Nancy foi uma experiência dura. Em outras condições, em início de doença, teria sido até de efeitos positivos, dadas as boas conclusões dos médicos. Mas depois de tantos exames e abalos, o fato de recomeçar, de repetir, acabou por nos colocar os nervos em grande comoção.

Aqui em Viena, ainda estamos sob o choque, embora as companhias do Gibson e da mulher nos distraiam e alegrem.

Tenho apreciado muito Viena, com a sua grandeza de cidade-chefe, a enormidade dos palácios, as vastas perspectivas, e no meio disso tudo um povo que parece pobre para a Europa de hoje, com poucas aberturas para o futuro, deprimido pelos seus padecimentos de guerra, e muito sem força, sem força criadora. Nunca supus que se sentisse tanto o caráter de encontro de culturas, em que invariavelmente se insiste ao falar da Áustria. Nas ruas, há momentos em que se pensa em Paris, outros em que se sente a Itália, Roma sobretudo, e unindo tudo o fundo germânico. Tudo isso, porém, está mais na arquitetura, nos edifícios, do que na nação viva dos nossos dias.

O Kunstmuseum tem coleções magníficas. Vi com enorme satisfação os Brueghel, toda uma sala, em que estão quadros como a Bauernstanz, a festa das bodas, cenas de inverno, os jogos infantis. É extraordinária a força popular, não só dos temas, mas da pintura, isenta de qualquer requinte, sem luz e sombras, com cores puras, opostas sem transições, e um realismo sem nenhum propósito crítico. Também de Dürer há coisas ótimas, entre elas a magnífica virgem com o menino, uma Gretchen de absoluta pureza, tratada com uma precisão de desenho e uma delicadeza de cores, que a meu ver a colocam com vantagem no cotejo com os melhores Rafaéis. Há vários Cranachs excelentes, e uns oito Velasquez tão bons como os melhores do Prado.

Visitamos também a Albertina. Não há exposição, funciona como uma biblioteca. Pedimos as pastas de Michelangelo e Leonardo, que nos foram trazidas no gabinete de leitura, contendo os originais de desenhos a tinta, sanguínea e lápis. Para um estudo em profundidade, é alguma coisa de grande significação.

Também importante a visita ao tesouro do Império, remontando ao Sagrado Império Romano Alemão. Coroas, cetros, bastões, armas, uniformes, mantos reais e de ordens de cavalaria, num conjunto que não me lembro de ter visto em lugar nenhum. O que mais me impressiona é pensar no conceito de si mesmo, que o homem medieval tinha de ter, para se cobrir de tais roupas e objetos, que não seriam outros se fossem feitos para deuses.

Segunda feira seguiremos para a Itália, e a 21 ou 22 chegaremos a Paris para ocupar o apartamento de 2 quartos e 1 sala que o De Vicenzi nos vai emprestar. Estamos muito animados com essa experiência de moradia, que imagino mais trabalhosa, mas cheia de lados agradáveis. Vou, então, continuar a ginástica.

Estou satisfeito que vocês sejam os padrinhos da Lucia e do Zé Roberto. Entendam isso como significando que passam a ser mais que irmãos, e que têm de velar por eles. Confio muito no Zé Roberto. Embora não o conheça muito, pressinto nele um homem simples, inteligente e muito bom.

A notícia que nos chegou da cassação do Juscelino não me surpreendeu, creio que está na linha de concretização do movimento de abril. É claro que acentua a violência, que desacredita ainda mais o país, e não me surpreendo que outras decisões semelhantes venham ainda a sair. Quando vejo agora, num voto do Conselho de Segurança das N.U., envolvendo a condenação da política de discriminação racial da África do Sul, o Brasil abster-se para acompanhar os EUA, a Inglaterra e a França, sinto que a consciência do país está sob formas diversas de coação. Ora, é melhor que estejamos coagidos do que mudados. Nada impedirá que um país, onde o povo está à frente de sua classe dirigente, retome, mais cedo ou mais tarde, o rumo da revolução democrática. Releia, quando puder, as minhas “Ideias e Rumos”.

Já escrevi a seus pais, ao Raul e à meninas. Contamos, em Paris, com novas cartas e daqui mandamos, a você, Maria Helena e crianças, todo o nosso carinho.

Papio

29 de maio de 1964

Querido Felipe,

Sua carta chegou-nos hoje, trazendo a mim e a Edméa grande contentamento. É verdade que ficamos preocupados com a Dulcinha, mas espero que os dias de Petrópolis tenham produzido resultado.

Aqui tenho tido melhoras bem discretas, talvez um pouco mais de resistência para andar, e uma orientação mais definida quanto à correção de postura e à recuperação respiratória. Não fomos ainda a Nancy (o médico está no estrangeiro até 5 de junho), e o que tenho feito são ginásticas e massagens no serviço da dra Peilhon, aqui em Paris.

Estou muito em dúvida sobre o que faremos daqui por diante. Após a visita a Nancy é que poderemos fixar uma orientação. O mais provável será ficarmos por aqui, com uma curta visita a Viena e a Roma.

Não temos saído muito. Passo as manhãs na ginástica, e à noite temos ido ver algumas peças ou filmes. Não há nada de muito importante no teatro. Do que vimos, o mais sério foi a Sta Joana de B.Shaw, bem representada. Amanhã, sábado, iremos à N. Dame assistir ao oratório “Pacem in terris” de Darius Milhaud, regência de Ch. Munch. Fomos a Lourdes no fim de semana último, viagem atropelada, mas muito bonita, de automóvel, atravessando a Beauce, a Touraine, o Poitou, a região de Bordeaux (dos vinhos Graves), as Landes e o início dos Pirineus. Na volta fizemos uma boa visita ao castelo de Amboise, e seguimos pequenas estradas bem mais interessantes que as grandes “routes nationales”. Pudemos ver o quanto se elevou o nível de vida do camponês nas regiões que atravessamos. Bem vestidos e bem equipados, cada um deles com um automóvel, que deixa na estrada, no limite do seu terreno, enquanto faz o trabalho agrícola. Terminado o dia, retornam ao “village”, onde moram. Toda a França, aliás, está no fastígio da prosperidade. Os operários saindo das fábricas, no fim do dia, atestam a mesma condição de vida; o número de planos de férias populares e a massa que sai nos fins de semana e nas férias, atestam o advento de uma nova era, em que o repouso ocupa lugar igual ao do trabalho, e exige para isso toda uma programação social.

Politicamente o país não dá a mesma boa impressão. O governo do General é de um personalismo exacerbado e irritante, mais construído sobre exterioridades do que sobre realidades. É, além disso, e sobretudo, um governo sem a menor mensagem universal. Por isso, talvez, represente para os outros povos tão pouco. Dele não vem nenhuma sugestão válida, nenhum caminho aberto, para resolver os problemas do homem no quadro da cultura e da economia de hoje. Um governo que só se propõe a restauração da grandeza e do prestígio do seu país, é hoje paroquial. O “gaulismo” se propõe a criar uma força histórica nova, mas ninguém vê de que modo essa força pretende operar em relação às verdadeiras grandes questões, as que tem que ver com a eliminação da pobreza e com a conquista real da liberdade, para ascensão do homem em sua condição.

Comprei aqui algumas coleções de diapositivos da Unesco, sobre catedrais, castelos, Mont St Michel, etc. São muito belos, e vem acompanhados de um texto escrito por especialista. Espero que os possamos ver aí, com o Kodak-carroussel.

Apesar de um isolamento voluntário em relação aos assuntos brasileiros, não posso fugir a uma permanente preocupação com o que se passa no nosso país. As declarações do Mo. da Guerra, qualificando a entrevista do Juscelino como comparável ao discurso aos sargentos, deixaram-nos intranquilos. Estamos no fim de maio, e ao que parece, o movimento revolucionário não alcançou ainda o seu sistema de pontos de equilíbrio.

Internacionalmente, a situação do Brasil é má. Ocorreu uma quebra de expectativa, e uma reclassificação do país no quadro da instabilidade Latino-americana. A vinda do Carlos Lacerda à França foi um pequeno incidente provinciano, que, ao que parece, se encerrará nas próximas horas com novo desprestígio para o Brasil, já que ele, representante especial do Presidente da República, não será recebido pelo De Gaulle e não terá com o 1º ministro nenhuma conversação (mera visita protocolar).

Diga a Maria Helena que Edméa lamenta frequentemente a ausência de vocês, e a falta da companhia dela, em especial. Peça aos seus irmãos que nos escrevam, pois as cartas daí nos são um grande alento numa viagem feita sob condições tão peculiares. Diga à Tote que o Duvernois veio visitar-me; tomou um “scotch”, referindo-se a ela com muita simpatia, e partiu em viagem de verão para Viena, e depois para as Baleares. Apreciei muito a visita.

Até breve. Beijos a Maria Helena e às crianças, Dulce, João e irmãos.
Do Papio

Maria Helena – como seria bom se você estivesse aqui para olharmos as lojas. Não tendo companhia, com as preocupações de hoje, não acho graça para ir só. Beijos para você e Felipe. Peçam a todos para escrever.
Ed