Em 2005, Marcilio Marques Moreira, Arnaldo Niskier e Adacir Reis coordenaram a publicação de um livro intitulado ”Atualidade de San Tiago Dantas”, que é uma coletânea de depoimentos prestados por ilustres personalidades que tiveram oportunidade de conviver com San Tiago Dantas em alguns dos muitos caminhos que ele percorreu em sua breve mas profícua existência. Para Marcilio Marques Moreira “a presença se San Tiago, curta, mas intensa como a de um cometa, iluminou, com sua lucidez, visão do futuro e espírito público, pouco mais de três décadas do cenário brasileiro.”
Dele nos diz Arnaldo Niskier: ”Tinha tudo arrumado no cérebro, como se existissem pequenas gavetas, que ele abria na exata medida em que fluía a exposição de seu privilegiado pensamento”.
Para Hélio Jaguaribe, “todos aqueles que conheceram San Tiago se surpreenderam com o nível realmente excepcional de sua memória e com sua capacidade de elocução. Não havia nenhum intervalo entre o que San Tiago falava e o que se precisaria escrever do que ele dizia. Ele tinha uma absoluta correção e precisão na sua comunicação imediata, de tal maneira que as gravações de San Tiago eram textos impecáveis”.
Adacir Reis lembra que “O poder de concisão de San Tiago e sua marcante simplicidade verbal diante dos problemas mais complexos decorriam não só de um conhecimento muito superior ao da média dos juristas, como também da preocupação permanente com o rigor técnico da linguagem”.
Como seu aluno na então Faculdade Nacional de Direito, na qual colei grau em Dezembro de 1957, na última turma paraninfada por San Tiago Dantas, destaco três episódios ocorridos durante suas aulas.
Tendo em vista as qualidades ressaltadas por Hélio Jaguaribe e Adacir Reis, nossa turma resolveu contratar um taquigrafo para taquigrafar as aulas de San Tiago, imprimi-las em uma apostila, que seria vendida aos alunos como remuneração do serviço de taquigrafia. E assim foi. Os textos taquigrafados, impressos em mimeógrafo e transformados em apostila, eram de absoluta correção, em todos os sentidos. Não precisavam ser corrigidos em nenhum aspecto.
Tinhamos uma colega de turma, Ester, cuja filha, com 7 ou 8 anos de idade, costumava acompanhar a mãe nos sábados à tarde quando San Tiago nos convocava para o seminário, que se acrescentava às três aulas semanais que com ele tínhamos de Direito Civil. Certo dia, entramos no anfiteatro onde se ia realizar o seminário e a menina, Valéria, passou a subir os degraus da escada interna e a descer deslizando pelo corrimão. E assim ela ficou brincando enquanto o seminário não começava. Nós, os alunos, nos perguntávamos como San Tiago ia reagir à brincadeira da menina. San Tiago chegou, cumprimentou a turma, sentou-se em sua cadeira e começou a tratar do assunto que fazia objeto do seminário. Daí a alguns minutos, vira-se ele para Ester e pergunta: ”Essa menina é sua?” Diz a mãe, “sim professor, hoje é sábado e ela não tem aula e não tenho com quem deixá-la. Assim, trago-a para a faculdade. Diz San Tiago, “então faça-a aquietar-se”. Ester pegou a filha e retirou-a do anfiteatro. Foi assim que ela fez a filha aquietar-se, como pedido por San Tiago, que continuou sua exposição como se nada tivesse acontecido.
Um terceiro episódio que merece menção deu-se num outro seminário. San Tiago entrou no anfiteatro, tirou um pequeno cartão do bolso, passou os olhos nele e o colocou sobre sua mesa. Em seguida, vira-se para a turma e diz “Hoje vamos falar sobre a hipoteca”. E começou a discorrer sobre a história da hipoteca nas diversas épocas e nos diversos sistemas legais: a hipoteca na antiguidade, na idade média, na Grécia, em Roma, na Alemanha, na Itália, na Espanha, em Portugal e no Código Civil brasileiro de 1916, ainda em vigor. Nós alunos ficamos intrigados como San Tiago teria posto no pequeno cartão que trouxera tantas informações sobre a hipoteca. Assim, resolvemos pedir ao nosso colega de turma Raul San Tiago Dantas Barbosa Quental, sobrinho de San Tiago, que surrupiasse o cartão do tio para nós vermos como ele teria incluído tanta informação num pedaço tão pequeno de papel. Quando Raul volta com o cartão, vimos que nele estava escrito apenas “hipoteca”, o tema do seminário e nada mais. Todas as informações que nos foram passadas por San Tiago sobre a hipoteca em diferentes épocas e em diversos sistemas legais, estavam armazenadas em seu cérebro.
O quarto episódio deu-se pouco antes da colação de grau. Antes de começar o debate do tema que fazia objeto do seminário, disse-nos San Tiago: “seja qual for o caminho que vocês tomem após a graduação, o exercício da advocacia, a magistratura, o Ministério Público, a diplomacia, a cátedra ou a política, há dois fundamentos inarredáveis para que vocês exerçam qualquer dessas funções: integridade moral e competência profissional. E mais, todo o desenvolvimento profissional de vocês deve partir do SABER. É o SABER que lhes poderá levar ao TER e também ao PODER.
Note-se que esses foram os caminhos de San Tiago: exerceu com brilho a advocacia e amealhou razoável patrimônio: o SABER levou-o ao TER. Posteriormente, elegeu-se deputado federal e mais tarde foi Ministro da Fazenda e das Relações Exteriores: o SABER levou-o também ao PODER. Terminando sua lição, disse-nos San Tiago:” O que é inadmissível é que o TER leve ao PODER. E absolutamente inaceitável que o PODER leve ao TER”.
Observando o que se passa no Brasil hoje em dia, parece-me que muitos que ocupam postos no PODER jamais aprenderam essa lição de San Tiago, ou já a esqueceram, o que é lastimável.
Condorcet Rezende – 8/2/2017